É «uma não biografia», até porque corria o risco de ficar desatualizada no dia em que fosse publicada, e uma obra «escrita a quatro mãos» entre a historiadora Maria João Raminhos Duarte e o (não) biografado, sobre a multifacetada e animada vida de Vítor Neto.
O livro “Vítor José Cabrita Neto – Uma Não Biografia”, uma «narrativa biográfica» sobre este empresário, dirigente associativo, antigo secretário de Estado do Turismo, ex membro do Partido Comunista e resistente contra o fascismo, da autoria da historiadora Maria João Raminhos Duarte, foi apresentado no dia 19, nos Paços do Concelho de Silves.
A sessão contou com uma sala cheia de personalidades dos mais diversos quadrantes, desde a política até à cultura, passando pelo mundo empresarial e académico, entre outros – foi, de resto, a um académico, João Guerreiro, antigo reitor da Universidade do Algarve, que coube a tarefa de fazer uma apresentação sobre o livro.
O livro foi encomendado pela Câmara de Silves à historiadora algarvia, no âmbito das comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril, e é o primeiro de vários cuja edição a autarquia pretende financiar, sobre outras personalidades do concelho que contribuíram para a liberdade.
«Se não for com este tipo de registo, como é que podemos honrar o contributo destas pessoas?», questionou Rosa Palma, presidente da Câmara de Silves.
«Foi difícil condensar a vida deste homem numa obra, porque fez tanto de trabalho e tão multifacetado e diversificado. Para mais, está vivo, o que obriga a não sermos intrusivos demais», ilustrou, por seu lado, Maria João Raminhos Duarte.
Ao mergulhar «na extraordinária vida de Vítor Cabrita Neto», a historiadora percebeu que «biografá-lo, nos nossos dias, é impossível», até porque «a sua atividade e contributo ainda perduram».
Assim, a autora tentou, acima de tudo, dar a conhecer Vítor Neto «não apenas como figura histórica, mas como exemplo de resiliência».
«Foi uma aventura para mim, um bocadinho diferente daquilo que estou habituada a fazer, mas muito gratificante, porque Vítor Neto é uma pessoa deveras diferente e extraordinária, além de sensata e humilde», confessou.
«Vítor Neto é um dos últimos “dinossauros” do Algarve, alguém em cuja personalidade os algarvios reconhecem uma titularidade que não tem a ver nem com a fortuna, nem com os estudos. Falo de homens como António Aleixo, que, sendo analfabeto, toda a gente o reconhecia, incorporando ao homem algarvio, mas também como João de Deus ou Duarte Pacheco», afirmou Maria João Raminhos Duarte.
«Penso que Vítor Neto é um dos últimos dessa geração, uma personalidade em que os algarvios, consensualmente, se reconhecem, fora de pruridos políticos e ideológicos, até sabendo que foi militante e quadro do PCP», acrescentou.
Os elogios da autora do livro foram correspondidos pelo biografado, que salientou a capacidade da escritora de «cruzar o conhecimento profundo sobre a história do Algarve com o cruzamento da minha vida com essa história».
Nascido em 1943, em São Bartolomeu de Messines, Vítor Neto é filho do empresário Teófilo Fontainhas Neto, uma figura proeminente deste concelho e do Algarve, à época.
Mas Teófilo Fontainhas Neto não foi apenas um empresário, como recordou João Guerreiro. Este ilustre messinense também esteve «associado às lutas operárias» no início do século, e teve um papel «na identificação dos problemas» vividos na época, através de um jornal dos anos de 1930 no qual colaborou, chamado Rajada, onde eram abordados, de forma humanista, temas como a situação dos indigentes, hoje denominados “pessoas sem abrigo”, entre outros, algo que não era bem visto pelo então ainda jovem Regime salazarista.
Na sessão de apresentação, Vítor Neto fez questão de frisar o facto do seu pai ter sido «determinante» para o seu percurso de vida. «Foi o meu mestre mais importante e isso teve consequências em toda a minha vida».
Depois da infância passada na sua terra natal – «era uma criança atenta, interessada pelo funcionamento dos negócios da família» -, Vítor Neto foi estudar para Lisboa, para o Instituto Superior Técnico.
«Não fui para Coimbra, porque gostava muito de folia. Decidi: vou para Lisboa, para estudar. Passado quatro meses, estava preso (risos)!», contou.
Foi no tempo de universitário que começou a intensificar-se a sua atividade política, através da participação nos protestos estudantis. E foi num deles que acabou por ser o protagonista involuntário de uma imagem que se tornou icónica e ficou para a história, como recordou Maria João Raminhos Duarte. Uma imagem que o livro reproduz, no original e num mural pintado recentemente.
«É muito engraçado, porque ele imortalizou, sem querer, aquilo que foi a crise académica de 1962. [Durante um protesto] ele vai a andar, é atacado por trás, com uma coronhada, e cai. Depois é levado pelos colegas. E alguém, aquele fotógrafo anónimo, que andava a fotografar os estudantes, captou esse momento. Se for hoje à cantina da Universidade de Lisboa, à Cantina Velha, os estudantes, na homenagem que fizeram em 2012, creio eu, pintaram exatamente essa fotografia», contou a historiadora.
Eventualmente – e até para poder continuar os seus estudos, uma vez que foi expulso do Técnico, devido à sua atividade política -, Vítor Neto viu-se compelido a mudar-se para Itália, para continuar a sua formação.
Em 1963, veio a Portugal, para visitar a família, e tinha a Polícia à sua espera na fronteira, em Vilar Formoso. «Tinham um mandado. O comboio ficou parado duas horas, toda a gente perguntava o que se passava e , afinal, era para me prender. Levaram-me para Caxias. Fui pressionado e intimidado, embora não me tenham torturado. Depois deste episódio, voltei para Itália e só regressei a Portugal depois do 25 de Abril», recordou.
No exílio, organizou a resistência à ditadura do Estado Novo, a partir de Itália. E até foi lá que se casou, com a italiana Simonetta.
Na sua passagem por este país, «que até agora era desconhecida da academia, é ele que vai montar toda a estrutura da resistência, não só em Génova, mas por toda a Itália», enquadrou Maria João Raminhos Duarte.
«Ele é que faz a articulação com a resistência em Paris, na Suíça e em África. Conheceu todos os líderes – Amílcar Cabral, Samora Machel -, participou em todas as conferências. Neste campo, eu acho que o grande interesse para os historiadores não será a biografia propriamente dita, mas dar a conhecer o que foi feito em Itália», disse.
Regressado a Portugal, Vítor Neto foi, como o próprio revelou, «militante e quadro do PCP, na área da propaganda, durante alguns anos», função que lhe permitiu percorrer Portugal de Norte a Sul e ter uma perspetiva global dos problemas do país.
A dada altura, decidiu dedicar-se à empresa do pai, «para não a deixar cair». Mais tarde, foi convidado pelo então primeiro-ministro António Guterres, socialista, para ser secretário de Estado do Turismo.
Hoje, além da sua atividade como empresário, é igualmente o presidente do NERA – Associação Empresarial da Região do Algarve.
Como se percebe, Maria João Raminhos Duarte não teve uma tarefa fácil, para contar com pormenores estes episódios da vida de Vítor Neto.
«Mas foi uma aventura muito interessante, porque o biografado mergulhou na sua própria vida, quase que se autobiografou. E nas dúvidas que eu colocava, ele próprio se transformava em investigador. Foi uma parceria. Esta é uma partitura tocada a quatro mãos», revelou a autora do livro.
«Para mim, foi um livro muito importante de escrever, enquanto historiadora, porque, hoje em dia, o nosso mundo político e as lideranças políticas estão quase que irremediavelmente abaladas por descrédito da opinião pública. Este homem é um caso à parte, é eticamente irrepreensível por todo o sítio onde passou. Foi muito bom, porque oferece, além do exemplo da resistência e da cidadania, um farol de esperança, um farol daquilo que devia ser a política».
Também muito importante no processo, salientou a historiadora, foi Simonetta Neto, a mulher do biografado, responsável pelo seu «arquivo pessoal muito rico e bem organizado, sem o qual este livro seria muito mais pobre».
Fotos: Hugo Rodrigues | Sul Informação
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