A economia criativa e os sistemas produtivos da 2ª ruralidade

Choque assimétrico na economia algarvia, provocado por uma turistificação excessiva e a uberização acelerada que daí decorre, não faz parte do universo cultural Unesco e da doutrina de preservação e valorização que está contida nas suas declarações de património imaterial

Quinta Pedagógica

Volto a um tema que me é muito caro, a saber, a triangulação virtuosa e as hiperligações positivas entre os sistemas produtivos locais (SPL), a visitação turística e a economia criativa.

Em matéria de sistemas produtivos locais, e paralelamente às agriculturas de precisão, surgirão as denominadas agriculturas pós-produtivistas, umas mais sociais e comunitárias outras mais especializadas, mas todas, em princípio, agriculturas de maior proximidade e circularidade.

As alterações climáticas, a agroecologia, as economias de nicho e a alimentação saudável, mas, também, os ecorregimes e os pagamentos pela prestação de serviços ambientais, funcionarão como pretexto e causa próxima e despertarão uma curiosidade crescente por parte das próximas gerações de jovens empresários rurais.

No plano da transição agroecológica adoto as palavras do Arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles relativas ao organicismo da paisagem global quando ele diz: plantações de árvores não são floresta, engenharia florestal não é silvicultura, culturas transgénicas não são agricultura, animais clonados não são a pecuária, operações fundiárias não são engenharia biofísica, arranjismo verde não é arquitetura paisagística, esverdeamento de culturas não é prestação de serviços ambientais; em vez disso, paisagem global é um mosaico muito complexo e interdependente onde cabem a conservação da natureza, a produção de alimentos frescos, as amenidades agroturísticas e a gestão das áreas de paisagem protegida, de acordo com critérios técnicos, mas, também, estéticos e éticos.

Neste alinhamento da transição agroecológica, os SPL podem acolher diversas aplicações de natureza multifuncional:

– As denominações de origem protegida (DOP): no quadro de um parque natural ou de um subsistema serrano, por exemplo, podemos (a parceria local) modernizar o sistema produtivo local, criando, para o efeito, uma agroecologia específica, uma denominação de origem protegida (DOP) e uma nova estratégia de visitação por via de um marketing territorial mais ousado e imaginativo;

– Os mercados ou segmentos de nicho: no quadro de um centro termal, de um aldeamento turístico ou de uma amenidade fluvial podemos (a parceria local) recriar um nicho de mercado, por exemplo, um novo espaço público de qualidade para o turismo acessível, terapêutico e recreativo com base numa pequena aglomeração de atividades terapêuticas, criativas e culturais criadas para o efeito;

– Os complexos agroturísticos com campo de férias e aventura: no quadro de uma empresa, cooperativa ou associação de desenvolvimento local podemos (a parceria local) lançar uma estratégia criativa e integrada de agroturismo e turismo rural que inclua a participação dos visitantes nas práticas agro rurais tradicionais e a colaboração de voluntários de campos de férias, trabalho e aventura;

– As redes de turismo de aldeias e de natureza: um grupo de aldeias com vocação especializada num determinado sector ou produto, as aldeias vinhateiras do Alto Douro, por exemplo, património mundial da Humanidade, associa-se com os empreendimentos turísticos, as associações ou clubes de produtores, uma escola superior e as associações culturais mais representativas, tendo em vista desenhar uma estratégia conjunta de visitação e valorização do património material e imaterial dessa sub-região;

– As marcas coletivas para o relançamento de uma gama de produtos: um grupo de empresas, cooperativas agrícolas e associações de desenvolvimento associam-se tendo em vista desenhar e aplicar uma estratégia conjunta de modernização agrária e comercial para uma sub-região que foi objeto de investimentos públicos significativos e que precisa urgentemente de ser relançada (por exemplo, os novos regadios);

– Os sistemas ou mosaicos agroflorestais (SAF): no quadro de uma ou mais Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), as associações de produtores florestais, reservas cinegéticas, áreas de paisagem protegida, as comunidades humanas locais associam-se para constituir um sistema agro-silvo-pastoril tendo em vista criar uma estratégia de intervenção integrada que vai desde a prevenção e recuperação de áreas ardidas à construção dos sistemas agro-silvo-pastoris com o seu cabaz completo de produtos da floresta;

– Um centro de ecologia funcional e arquitetura paisagística: um centro de investigação na área da biodiversidade, da ecologia funcional e reabilitação de ecossistemas, um parque ou reserva natural, uma associação agroflorestal, empresas de turismo em espaço rural, empresas na área do termalismo, propõem-se criar um programa de investigação-ação-extensão tendo em vista a preservação da biodiversidade e dos endemismos locais, a melhoria da oferta de serviços ambientais e a valorização comercial destes ativos por via do lançamento de serviços turísticos, culturais e científicos;

– Os programas vocacionados para aldeias serranas e de montanha: um agrupamento de municípios conjuntamente com as associações de desenvolvimento local, os parques naturais e os operadores empresariais respetivos criam uma parceria local para desenhar e lançar um programa de desenvolvimento comunitário de aldeias serranas e de montanha e um cabaz de produtos correspondente;

– Os parques biológicos e ambientais: um agrupamento de municípios, um grupo termal, uma área de paisagem protegida, uma associação ambientalista ou de desenvolvimento local propõem-se criar uma espécie de santuário, amenidade ou ecossistema exemplar que seja um local de visitação e observação, mas, também, um laboratório de boas práticas agroecológicas, de engenharia biofísica, ecologia da paisagem e reabilitação de habitats;

– Os Parques Agrícolas Intermunicipais com objetivos de inclusão social: no campo da ação social, um projeto intermunicipal, associativo ou comunitário, junta os Sindicatos, as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), uma escola superior agrária; o objetivo desta parceria local é um programa de inclusão social em sentido amplo, que inclui a formação profissional e a realização de contratos de institutional food para abastecimento de escolas, prisões, hospitais, quartéis, lares, etc;

– As Quintas Pedagógicas, Recreativas e Terapêuticas: no campo da ação pedagógica, recreativa e terapêutica, um projeto intermunicipal, associativo e comunitário, dirigido aos grupos mais vulneráveis da população com necessidades especiais, que junte as IPSS, os serviços hospitalares, a universidade, as ordens profissionais e os centros de investigação, tendo em vista a provisão de serviços médicos, pedagógicos, recreativos e terapêuticos, mas também ambientais e que são essenciais para o bem-estar e a qualidade de vida dos grupos mais sensíveis de população;

– Os condomínios para a gestão de bens comuns: no campo da ação coletiva e da provisão de serviços comuns, para impedir o uso abusivo de recursos naturais que agravam as alterações climáticas e a utilização dos solos, podem ser desenhados várias estruturas associativas sob a forma de condomínio rural, seja para gerir um banco de terras, um espaço baldio, uma linha de água, um bosquete multifuncional, uma área de agricultura social, um território cooperativo, um parque periurbano, tendo em vista a gestão de bens comuns em risco iminente.

Aqui chegados, pensemos, por exemplo, no triângulo formado pela dieta mediterrânica como ativo Unesco, o turismo algarvio como atividade motora e a economia rural tradicional do barrocal serra algarvio como fator de hiperligação criativa.

A Dieta Mediterrânica, património imaterial da UNESCO, é um excelente pretexto para desencadear uma reflexão sobre os processos de modernização e inovação do rural tradicional algarvio, no preciso momento em que a turistificação da economia algarvia pode ser instrumentalizada pelas melhores e piores razões. No primeiro caso, para debater serenamente a restruturação do rural tradicional algarvio, no segundo caso, para surfar a onda e tirar partido do oportunismo comercial que cruzará o Algarve em todas as direções.

Ou, dito de outro modo, o choque assimétrico na economia algarvia, provocado por uma turistificação excessiva e a uberização acelerada que daí decorre, não faz parte do universo cultural Unesco e da doutrina de preservação e valorização que está contida nas suas declarações de património imaterial.

 

Nota Final

O que fica dito, reconduz-nos a uma velha discussão entre as opções que privilegiam a tecnologia, o produtivismo e a rentabilidade de curto prazo com mitigação quanto baste dos impactos sobre o ecossistema, e as opções que privilegiam as tecnologias emergentes de agroecologia sustentável, com retorno mais demorado e maior circularidade de todos os elementos do ciclo produtivo. São duas abordagens distintas, mas, também, duas aprendizagens complementares.

No primeiro caso, falamos de produtivismo e produtos do agrossistema, no segundo, de pós-produtivismo e de bens e serviços de agroecossistemas. Na prática do dia a dia, porém, praticamos um sistema produtivo que é um mosaico de agriculturas onde coabitam uma agricultura familiar de subsistência e baixa intensidade tecnológica, uma agricultura capitalizada, de precisão e elevada intensidade tecnológica, e diversas agriculturas de intensidade intermédia em estádios diferenciados de capitalização e transição agroecológica.

No final, porém, haverá sempre um trade off entre tecnologia e ecossistema e um fluxo turístico de permeio.

Quando as tecnologias de precisão encontrarem um ponto de equilíbrio com os ecossistemas naturais e culturais teremos atingido um ponto de singularidade e esta reconciliação é, ela própria, uma fonte imensa de valor para a economia criativa, a inteligência coletiva territorial e os fluxos de visitação turística.

 

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