Uma viagem breve pela cidade orgânica e os jardins do paraíso

Talvez seja o tempo de voltar ao unitarismo de outros tempos, regressando à política e às causas públicas, reabilitando o discurso ideológico sobre a ocupação do nosso território antes que o tenhamos de recuperar num qualquer leilão de ocasião aqui ou no estrangeiro

Em plena turistificação do país, volto ao tema da cidade orgânica e inteligente. Há muito trabalho a fazer para que a cidade inteligente do futuro seja uma genuína cidade inteligente e criativa e não uma simples máquina digital ao serviço de uma certa ideia tecnocrática e ultramoderna de cidade massificada.

Neste sentido, há dois temas fundamentais, intimamente associados, que importa enfatizar.

Por um lado, sublinhar a distinção paisagística, os espaços verdes e a visão orgânica de cidade, por outro lado, relevar os recursos imateriais da memória, do imaginário e da cultura no planeamento e ordenamento da cidade.

E para o ilustrar vamos voltar, mais uma vez, ao arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles (GRT). Acerca da visão e recomposição orgânica de cidade diz-nos GRT em termos muito sintéticos:

– A cidade não é um puzzle de unidades territoriais desenhadas pela forma como a estrutura viária se relaciona com o tipo de edificação, isto é, a cidade não é um conjunto zonado de áreas independentes, só identificáveis pelo modo como o automóvel se relaciona com os blocos residenciais;

– As estruturas não-identificáveis e os vazios urbanos não garantem, só por si, a constituição de uma estrutura verde útil e eficaz, ou seja, os espaços verdes não podem ser espaços residuais, mas espaços substanciais que organizam o espaço, o que significa que a cidade deve ultrapassar o convencionalismo inadequado da composição vegetal que hoje envolve, por exemplo, o tratamento ajardinado em rotundas e faixas de separação;

– A imagem da cidade deve ser defendida através de um sistema cartografado de vistas que determine a dimensão dos edifícios, a distribuição e forma da vegetação e o enquadramento das infraestruturas e, além disso, no planeamento da cidade do século XXI, é fundamental considerar unidades operativas de conteúdo ecológico com autonomia de planeamento, sempre que necessário, sem as quais estará em causa a sustentabilidade biofísica, a qualidade ambiental e o abastecimento alimentar;

– Neste sistema compreensivo e orgânico de vasos comunicantes, o plano verde é um instrumento essencial na conceção dos espaços exteriores da cidade cuja autonomia do desenho é exigida pela retaguarda biofísica e cultural que lhe é própria e pela prática das artes que desde há muito servem a construção da paisagem viva.

E para complementar esta visão orgânica e circular de cidade inteligente e criativa, nada melhor do que umas folhas de poesia da natureza, uma filosofia dos jardins do paraíso, um passeio romântico através de uma paisagem de inspiração estético-literária.

Para fazer essa breve viagem, diz-nos o arquiteto GRT, muito sinteticamente: comece por apostar na sublimação do lugar tornando-o ameno e aprazível, depois invista na presença da água e na sua serenidade estética, em terceiro lugar, invista em espécies que sublinhem a pujança da natureza e enalteçam o ritmo da vida, depois tire partido da luminosidade natural dos espaços através do contraste sombra-claridade, a seguir deixe-se influenciar pela geometria e profundidade das perspetivas e promova a integração do jardim na paisagem envolvente sempre que esta seja ordenada e bela, para tal aceite a ordem natural como base da conceção do jardim e valorize os aspetos culturais da paisagem, pois a ordem cultural é a ordem da humanidade, finalmente, evite os excessos do decorativismo e exalte a simplicidade no ordenamento das coisas, pois um jardim e uma paisagem são fruto de conceções e projetos e nunca de arranjos ou decorações, tudo na medida certa.

A eloquência e a elegância destes princípios falam por si. Percebe-se agora melhor a razão pela qual os conceitos de paisagem global e unidade de paisagem presidem à sua conceção do ordenamento do território e dos sistemas de produção.

Ou seja, com GRT, o fator ecológico, o fator produção e o fator cultura não estão compartimentados em silos administrativos e reclamam, por isso, uma outra conceção da política administrativa e da administração da política. Tão simples como isso.

Notas Finais

Hoje, na terceira década do século XXI, os sinais distintivos territoriais (SDT) são a imagem de marca de um território. Um desses sinais é a distinção paisagística e patrimonial.

Num tempo de turismo total, não é apenas a gentrificação das vilas e cidades que nos deve preocupar, é, também, a ludificação excessiva e, sobretudo, o critério e o modo como dispomos e usamos recursos escassos como a água, o solo e a vegetação, no fundo a paisagem global que nos acolhe.

Um outro sinal distintivo diz respeito ao modo como a arte e a cultura concebem e praticam a cidade inteligente e criativa para lá da cidade meramente digital, uma vez que não existe determinismo tecnológico, nem há um admirável mundo novo colado à cidade digital.

Um terceiro sinal distintivo diz respeito ao governo da cidade, uma administração articulada entre democracia representativa, democracia participativa e democracia colaborativa, com a formação de duas cidades inteligentes e complementares, a cidade centralizada sob a modalidade de loja do cidadão e a cidade coproduzida sob a forma de uma rede descentralizada e distribuída de plataformas colaborativas.

Um último sinal distintivo e impressivo que não pode ser subestimado diz respeito ao respeito dos limites e das linhas vermelhas em matéria de cidadania, convivialidade e direitos humanos, pois receamos bem que a hipervelocidade, a hipervigilância, o hiperconsumo e o hiperindividualismo acabem por colidir, tarde ou cedo, com a cidade das relações, dos espaços públicos e pontos de encontro onde a alegria dos vizinhos e dos visitantes se manifesta, em contraponto com a dissolução dos lugares nos espaços mediático e virtual.

Não simplifiquemos, pois. Talvez seja o tempo de voltar ao unitarismo de outros tempos, regressando à política e às causas públicas, reabilitando o discurso ideológico sobre a ocupação do nosso território antes que o tenhamos de recuperar num qualquer leilão de ocasião aqui ou no estrangeiro.

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

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