Os novos lugares do quotidiano

Na sequência da minha última crónica sobre as cidades do futuro e a perspetiva das redes, viajo, agora, até aos […]

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Na sequência da minha última crónica sobre as cidades do futuro e a perspetiva das redes, viajo, agora, até aos novos lugares do nosso quotidiano. No tempo que vivemos, em plena era digital, os locais e os lugares diversificam-se e multiplicam-se.

São os locais de residência (2ª e 3ª residências), os locais de trabalho (presencial, teletrabalho, espaços de coworking, tiers-lieux), os lugares de recreio, lazer e visitação, os locais de compras e consumo, os locais de convivialidade do espaço público, os locais para as práticas físicas e desportivas, os lugares de culto e peregrinação, os locais de manifestação artística e cultural, os lugares de realidade aumentada, virtual e imersiva, os lugares e as plataformas de ensino e formação etc.

Como é evidente, uma parte destes locais e lugares faz parte das nossas rotinas do quotidiano; não são uma revelação do espírito e do génio do lugar, embora muitos deles façam parte das micro liberdades do quotidiano e dos pequenos nadas gratificantes que a vida ainda nos reserva.

É certo: a modernidade e a globalização fizeram dissipar o espírito dos lugares, em alguns casos desapareceu a sua singularidade e muitos lugares perderam o seu encantamento. Não desejamos, porém, que a cidade inteligente e criativa seja um não-lugar e o cidadão um simples individuo digitalizado. A reinvenção dos lugares do quotidiano é, para a nossa saúde mental, um verdadeiro imperativo categórico.

Façamos uma brevíssima incursão aos novos lugares e suas referências na literatura.

– Os não-lugares (Augé, 1992) são espaços de muita gente e de ninguém, espaços de muita circulação e de muito anonimato também; estamos a falar de aeroportos, estações, grandes avenidas, praças públicas, centros comerciais, parques de estacionamento, mas, também, de grandes cadeias de hotéis ou, mesmo, como hoje é visível, de grandes campos de refugiados; no fundo, estamos a falar de espaços de circulação e trânsito onde domina o avião, o automóvel, o comboio, o navio ou o autocarro. Marc Augé fala-nos de uma antropologia da sobremodernidade a caminho de uma antropologia da solidão, onde somos todos iguais, cópias uns dos outros, indivíduos solitários.

– Os hiper-lugares (Lussault, 2017), onde Augé via um não-lugar de solidão, Lussault vê agora um lugar intenso, hiperconetado, multiescalar e emocionalmente muito rico; além do mais, os hiper-lugares também podem ser outros-lugares e lugares alternativos, isto é, lugares de manifestação e protesto, lugares aleatórios como praças, parques e vias públicas; nessa imensa pluralidade de lugares cabem movimentos como o slow food e o decrescimento económicos; finalmente, Lussault destaca a importância das comunidades online para iniciar e enraizar novos movimentos e comunidades offline.

– Os terceiro-lugares (Oldenburg, 1989), o livro de Ray Oldenburg – “The great good places” – é acerca de uma sociologia urbana do quotidiano, de uma química própria dos lugares da nossa rotina quotidiana, do barbeiro à livraria, do café à loja de bairro, do bar ao restaurante da vizinhança; entre os lugares do trabalho e da residência, os terceiro-lugares são os lugares da descontração, da hospitalidade e da cultura de uma sociabilidade saudável, os lugares perfeitos para o exercício das micro liberdades do nosso quotidiano.

– Os espaços de coworking (De Koven, 1999), com os espaços de coworking, a cidade transporta-nos dos lugares familiares para os espaços colaborativos da sociedade tecnológica e digital do século XXI; falamos de estúdios, ateliers, hubs, fábricas, parques, academias, escritórios partilhados, utilizados por microempresas, empreendedores individuais, profissionais liberais, trabalhadores independentes e nómadas digitais; a utilização de espaços comuns faz baixar os custos fixos do imobiliário, aumenta a conexão entre todos e faz germinar um espírito criativo e oportunidades empresariais.

– A arte do lugar (Schultz, 1997), nas palavras de Christian Schultz, o espírito do lugar passará a ser a arte do lugar, uma arte que o marketing cultural e turístico aproveitará para segmentar, diferenciar e explorar comercialmente; de facto, as metrópoles e as grandes cidades procuram afanosamente na arquitetura, nas grandes obras de arte e na ecologia urbana uma fonte para o mistério e o espírito dos lugares, contra o tédio e a melancolia das grandes urbes verticais.

Nesta brevíssima incursão, o espírito do lugar foi tomando forma e matéria e passou a designar a identidade, o carácter e a atmosfera de um lugar onde a arquitetura, a monumentalidade e a paisagem passaram a ter o papel principal. E é aqui que uma certa conceção de cidade inteligente, entendida como uma máquina digital absorvente, uma cidade essencialmente codificada, pode colidir com a liberdade, a irreverência e a criatividade da comunidade humana que a habita.

É tempo, pois, de continuarmos a nossa viagem até à cidade criativa e de buscarmos, mais uma vez, na obra destes autores a inspiração para a liberdade e reinvenção do quotidiano.

Neste contexto, simultaneamente material e imaterial, que aqui poderíamos designar de duplo movimento, o espírito dos lugares já não se obtém da sua substância, mas da sua itinerância, ou seja, o indivíduo é constantemente convocado para participar em uma série de eventos realizados em não-lugares, em terceiros lugares e em hiper-lugares, que são mais produzidos do que recebidos.

Assim, neste duplo movimento, caminhamos para uma espécie de paradoxo ou hibridismo do quotidiano, algures entre a rotina e a melancolia do dia a dia e a liberdade e reinvenção do quotidiano através das suas micro liberdades e dos pequenos nadas preciosos que a vida tem, transpostos, muitos deles, para o campo das artes, da cultura e do entretenimento.

Um fator de esperança que se assinala, é que, neste quadro de duplo movimento, em busca do nosso equilíbrio pessoal e da nossa melhor geografia sentimental, vamos descobrir a força dos laços fracos por intermédio das nossas vivências e relações nas comunidades virtuais e essa descoberta será, por vezes, uma verdadeira e gratificante revelação.

 

Notas Finais:

Neste hibridismo do quotidiano, a mobilidade acelerada, o nomadismo digital, a virtualidade aumentada e a topoligamia crescente são as características dominantes do nosso tempo e as comunidades online e suas plataformas os novos lugares centrais da era digital.

Vamos assistir, doravante, a uma dialética intensa entre espaços de fluxos e espaços de lugares e nesta dialética intensa emergem as grandes urbes verticais que misturam a velocidade e a vertigem com momentos prolongados de tédio, melancolia e depressão, uma espécie de cidade líquida onde tudo é transitório, passageiro e efémero, isto é, liquefeito.

Em síntese, este paradoxo ou hibridismo do quotidiano, que aqui designamos por duplo movimento, é, mesmo, o traço mais marcante e impressivo do nosso tempo. Mas não há qualquer dúvida, nós vamos descobrir rapidamente a força dos laços fracos (Granovetter, 1973) nas comunidades online e a partir deles, com a ajuda da tecnologia, arte e cultura, reinventar os velhos lugares e as novas vivências do quotidiano.

 



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