O comboio chegou a «Portimão» a 15 de Fevereiro de 1903, há 120 anos

A festa foi grande, mas o comboio não chegava mesmo a Portimão, ficava na margem lagoense do rio Arade, na estação que hoje se chama Ferragudo-Parchal

«É por toda a parte um ruído de festa que estonteia e atordoa»
(jornal «O Heraldo», 19/2/1903)

O dia 15 de Fevereiro de 1903 ficou não só gravado nos anais da história do Algarve, como na memória dos milhares de pessoas que acorreram à margem esquerda do Arade, para assistirem aos festejos da inauguração do então ramal ferroviário de Portimão.

O progresso chegava às portas de Vila Nova de Portimão. Goradas que foram, 38 anos antes, as tentativas do Visconde de Bívar para que o traçado da linha férrea de Beja a Faro fosse primeiro a Portimão e só depois se dirigisse à capital de distrito, a linha férrea era ali uma realidade.

Deputado por Portimão, o Visconde Bívar, que já aqui recordámos, foi uma figura ímpar na defesa dos interesses do Algarve em geral e do Barlaventoem particular na Câmara dos Deputados, durante os 15 anos em que aí teve assento (1853-1868), bem como, na Câmara dos Pares, a partir de 1875.

É certo que, na época, o movimento do porto de Portimão era maior que o de Faro, mas tal não foi suficiente para convencer o governo, nem algumas municipalidades algarvias, nesse sentido.

Assim, quando, a 29 de março de 1865, aquele deputado questionou o então ministro das Obras Públicas, João Crisóstomo, acerca da orientação do caminho de ferro de Beja a Faro e aquele informou que este se aproximaria o mais possível de Portimão, mas não contemplaria aquela localidade, Coelho Bívar foi categórico: «desengane-se S. Ex.ª, se o caminho não for por Portimão, mais tarde ha de construir-se um ramal, que ha de ir entroncar no caminho de S. Bartholomeu a Faro».

 

Visconde Bívar

 

Quinze anos depois, em 1880, o então ministro das Obras Públicas, Augusto Saraiva de Carvalho, ventilava na Câmara dos Deputados que, do caminho de ferro do Algarve, «há de ir um ramal a Villa Nova de Portimão, ramal muito importante, porque vae servir uma população de muitas mil almas que lhe hão de alimentar o movimento».

A 21 de Março de 1881, discutiu-se um projeto-lei que previa, entre outros, a construção de «um ramal que partindo de S. Bartholomeu de Messines ou Tunes, vá por Silves até Villa Nova de Portimão».

Todavia, a sua concretização foi demorada. Recorde-se que, por essa altura, o comboio era uma miragem no Algarve. É certo que as obras entre Beja e Faro se haviam iniciado em 1865, para logo ficarem suspensas, e, em resultado, a locomotiva não silvava abaixo de Casével (Castro Verde), onde chegara a 20 de dezembro de 1870.

Consagrada, por fim, a sua execução, juntamente com o ramal de Portimão, na Lei de 29 de Março de 1883 e no decreto de 17 de Setembro do mesmo ano, a primeira tornou-se uma realidade em 1889, enquanto a segunda teve de aguardar pelos alvores do século XX.

Se a construção da linha entre Beja e Faro não foi prioridade para os sucessivos governos (a obra logrou materializar-se 20 anos após a data aprazada), o ramal de Portimão ainda menos, de tal forma que o visconde de Bívar, que tanto lutara pela sua execução, não a viu concretizada, já que faleceu em 1890.

A visita real ao Algarve, em Outubro de 1897, com o rei D. Carlos a prometer interessar-se pelo assunto, acabou por ser determinante. Em Fevereiro seguinte, o monarca aprovava o traçado da linha e, com el,e o começo dos trabalhos.

Assim, na Primavera de 1898, as obras iniciavam-se a partir de uma nova estação, criada de propósito no despovoado sítio das Gateiras, surripiando o nome de uma aldeia próxima, Tunes, ou antes «Tunis», como na época se escrevia.

Todavia, se o caminho de ferro avançava finalmente para oeste, a diretriz escolhida não deixou de estar envolta em polémica. Ataíde Oliveira, o conhecido monografista, natural de Algoz, repudiava o sítio determinado para a estação na sua terra, considerando-o longe do centro da aldeia e, por conseguinte, contrário aos interesses da mesma.

Em Silves, o protesto foi semelhante, ainda que com mais fundamento, pois a gare ficava a dois quilómetros da cidade. Melhor sorte conheceram as gentes de Alcantarilha e Pêra, que viram a estação ser levantada no local que pretendiam e não como estava projetada.

Polémicas e muitos artigos de jornal à parte, o comboio chegava a Algoz ainda em 1899, para, a 19 de março seguinte, atingir festivamente o Poço Barreto, e Silves a 1 de Fevereiro de 1902.

 

A ponte e Villa Nova de Portimão (desenho inserido em «O Século», de 16-2-1903)

 

Um ano e quinze dias depois, ele era uma realidade às portas de Portimão. Quase 14 anos depois de ter chegado a Faro, os portimonenses ouviam o silvo do progresso rasgar os céus do Barlavento, ainda que, para Sotavento, só a 28 de março de 1904 o comboio tenha alcançado Olhão…mas isso é outra história.

O Barlavento solenizou o acontecimento, com «estrondosas festas», como dá nota a imprensa da época. A 14 de Fevereiro de 1903, o correspondente de Portimão de «O Século» informava que havia grande entusiasmo na vila, encontrando-se a avenida, cais e ruas adjacentes «vistosamente embandeirados». Havia também coretos construídos de propósito e até um repuxo, enquanto os quartos nos hotéis estavam esgotados.

Por sua vez, de Faro, o mesmo jornal noticiava «a inauguração do caminho de ferro de Portimão promette revestir grande imponência. D’esta cidade não vão menos de quinhentas pessoas e os concelhos do barlavento da província teem também larga representação n’aquellas festas».

A manhã daquele domingo, 15 de Fevereiro, raiou primaveril e festiva. Em Faro, a cidade registava, naquela madrugada, um movimento desusado, de acordo com o semanário «O Heraldo», numerosos grupos «onde a alegria jorra gargalhadas e invectivações pagãs, cortam a cidade a caminho da estação».

Um grandioso comboio inaugural, com 13 carruagens e dois furgões, num total de 300 lugares, aguardava os passageiros, que se apinhavam na gare, com destino a Portimão, e saiu repleto às 8h00 da manhã.

Lá seguiam o Governador civil, comendador Ferreira Neto, deputados da nação, autoridades civis e militares, técnicos da ferrovia, estudantes (em número de 96), professores do liceu e de outras escolas, banda de música, «damas da primeira sociedade», jornalistas, etc.

Em Loulé, entrou na composição a filarmónica Marçal Pacheco, também convocada para o ato inaugural, bem como muitos louletanos. Havia 40 senhas distribuídas, porém não havia lugares para tantos passageiros. Um protesto que conhecia ali o seu início.

Em Silves, e segundo «O Século», era o comboio inaugural «esperado por enorme massa de povo e muitos cavalheiros e damas com duas philarmonicas, que também seguiram até Portimão».

O comboio, que chegara cheio a Loulé, vindo a receber mais passageiros e entidades municipais em várias estações do percurso, encontrava-se, à saída de Silves, a rebentar pelas costuras, de tal forma que, para o correspondente de «O Heraldo», «daqui a pouco temos a Mouraria dentro dos vagons», mas, para ânimo, logo reconhecia «a apregoada pacatez d’este sereníssimo povo algarvio!». Afinal, a viagem era gratuita e ninguém quis perdê-la.

Um pouco depois, «de repente estridulam no ar numerosíssimos foguetes. O comboio diminue de velocidade, assobia, pára. É Estombar». Na penúltima estação, a primeira da nova linha, onde a Câmara de Lagoa aguardava a composição, «foi grande o numero de foguetes e muitos vivas enthusiasticos ao sr. governador civil, ministro do reino, partido regenerador, visconde de Bívar e ministro das obras públicas». Aclamações que tinham sido repetidas em todo o trajeto.

 

 

Subiram à composição mais entidades e duas filarmónicas, vindas de Alvor. Aquela partia ao som do hino nacional e aproximava-se agora do seu destino. Sigamos «O Heraldo»: «D’ahi a pouco uns pequenos esboços de casaria no horisonte… Portimão à vista. Portimão, emfim! Abrem-se as portinholas… das carruagens, desordenadamente, e desembarcamos n’um areal. É a estação aqui; a villa além, a vinte minutos de caminho».

Três horas depois, às 11h00, o comboio inaugural chegava ao seu destino. Para o semanário «O Districto de Faro», foi ali que a «festa atingiu as proporções do bello e do phantastico». A Câmara de Portimão, presidida pelo Visconde da Rocha, ainda que sem estandarte, por a estação se localizar no concelho de Lagoa (atualmente designada de Ferragudo-Parchal), bem como outras autoridades, aguardavam os visitantes.

Dali, porque o novo ramal terminava do lado lagoense do Rio Arade, ainda era preciso atravessar a ponte rodoviária, para chegar de facto a Portimão.

Após um breve discurso de António Bernardo da Cruz, decano da imprensa algarvia, culminado com calorosos vivas ao rei, rainha e outras personalidades responsáveis pela obra, formou-se um cortejo a pé, com destino à Câmara de Portimão, onde decorreu a sessão solene.

Na dianteira, a Filarmónica Artística 8 de Dezembro, de Faro, seguida pela academia e pelas bandas Democrata Silvense e União Alvorense, atrás de «uma onda enorme de povo». A «affluência de povo era tal que se caminhava com difficuldade», segundo «O Século», para logo acrescentar: «basta dizer que o cortejo estabelecido da estação à villa, uma distancia de 1.600 metros, era totalmente tomado pela grande massa, que convergiu áquelle ponto de todos os lados da província».

Regressemos à descrição de «O Heraldo»: «passada a ponte, entramos na villa, que, sendo muito pitoresca e alegre, agora nos dá um deslumbrante aspecto com as suas caprichosas ornamentações: ruas embandeiradas e colchas riquíssimas enfeitando janellas dos prédios nobres».

O cortejo segue pela praça Visconde Bívar, ruas de Santa Isabel, do Postigo, dos Fumeiros, até à Câmara (à época no edifício do Colégio). Aqui as autoridades retiraram-se para a sessão solene, enquanto os populares continuaram o périplo pela vila, acompanhados das bandas filarmónicas. Já as «senhoras de Faro» e outras damas da comitiva foram recebidas nas salas do Grémio Familiar, de cujas janelas assistiram ao cortejo.

Na Câmara, os discursos pautaram-se pelo reconhecimento da importância do novel meio de transporte agora à disposição dos portimonenses, bem como de agradecimento aos governos que contribuíram para a sua concretização.

Lembrava o governador civil a importância que o Algarve tinha para D. Carlos, que aqui vinha desenvolver os seus estudos oceanográficos. A sessão terminou com uma taça de champanhe e um brinde a todos os que colaboraram na execução de tão importante benfeitoria.

Quer a Câmara, quer o governador civil enviaram telegramas para a família real, presidente do conselho de ministros e outras entidades, em sinal de reconhecimento pela obra inaugurada.

 

Distribuição do bodo (desenho inserido em «O Século», de 18-2-1903)

 

Na Praça Visconde Bívar, a comissão de festejos, composta por negociantes locais e caixeiros-viajantes de Lisboa, distribuiu um bodo a 50 pobres, composto por um pão, carne, feijão, arroz e cem reis em dinheiro. Ato abrilhantado pelas bandas de Faro e de Silves.

Terminado o bodo, a comissão reuniu-se na casa do médico Dr. Ernesto Cabrita, onde lhe foi prestada homenagem. Nesse dia, a revista local «Algarve» publicou um suplemento comemorativo que foi amplamente distribuído.

Na vila, o movimento era desusado. À passagem dos estudantes pelas ruas, «as damas atiravam-lhes das janellas grande profusão de flores, que elles agradeciam gentilmente», escreveu «O Districto de Faro».

Segundo «O Heraldo», «os hotéis, casas de pasto e vendas estão repletas de forasteiros. É por toda a parte um ruído de festa que estonteia e atordoa».

Às 14h00 muitos precipitaram-se para a estação, para alcançarem os melhores lugares, uma vez que, pouco depois, o comboio, com as autoridades, partia em direção à capital de distrito, ao som do hino da Carta (então o hino nacional) protagonizado pela filarmónica de Faro.

Na viagem, reinou o mesmo entusiasmo da manhã, com a vantagem de paulatinamente a composição ir esvaziando, até ao término do itinerário às 18h00.

Mas se os festejos perdiam fervor para quem partia, em Portimão eles continuaram: «a villa está toda embandeirada e o rio com os seus barcos, visto da ponte, dá um aspecto de formosura ao porto, que é o encanto dos visitantes».

À noite e segundo «O Século», que temos vindo a citar, eram «esplêndidas as illuminações á veneziana, da commissão dos festejos na praça do Visconde de Bivar, e que abrangem todo o Aterro e o Caes». Luminárias que se estendiam às casas particulares, ao edifício da alfandega e ao pavilhão das águas.

Já o repuxo «illuminado com copos» produzia um bonito efeito pela altura que atingia. Em diferentes locais, atuavam as bandas filarmónicas, enquanto as ruas estavam «atulhadas de forasteiros».

No dia seguinte, a filarmónica de Loulé, juntamente com a comissão de festejos, voltou a percorrer as ruas da vila e com a sua passagem cessavam as comemorações.

Estas constituíram «um verdadeiro delírio, uma d’estas festas que deixam gratas e indeléveis recordações na memória dos povos», conforme escreveu «O Século». Por sua vez, o «Diário de Notícias», em balanço, atestou «não houve o mínimo incidente desagradável».

Seis comboios diários passaram a servir aquela estação, três em cada sentido. Em 1905, foram 49 241 passageiros que ali embarcaram e expedidas 2 756 toneladas de mercadorias. Somente a 30 de julho de 1922 Portimão passou a usufruir de estação própria junto à localidade, aquando a inauguração da ponte ferroviária sobre o Arade e da linha até Lagos.

Volvidos 120 anos, a agora apelidada Linha do Algarve encontra-se novamente em obras, com vista à sua eletrificação. Se, em 1903, o atraso na construção da via relativamente a Faro foi de 14 anos, mais de um século depois essa dilação é ainda maior, só 20 anos após a catenária ter chegado a Faro ela será uma realidade em Portimão.

Afinal as gerações revezam-se, os regimes políticos mudaram, mas as prioridades de investimentos no Algarve, face ao contexto nacional, essas parecem imutáveis e são sinónimo de adiado, moroso, e não raras vezes suspenso para sempre…. Mas, por agora, Fevereiro de 1903, «felicitámos os povos do barlavento por este melhoramento», nas palavras do Diário de Notícias, e louvemos os responsáveis por ele: viva a família real, viva ao visconde de Bívar, viva o ministro das Obras Públicas, viva Vila Nova de Portimão!…

 

 

Autor: Aurélio Nuno Cabrita é engenheiro de ambiente e investigador de história local e regional, bem como colaborador habitual do Sul Informação.

Nota: Nas transcrições conservou-se a ortografia da época. As imagens são meramente ilustrativas e correspondem, na sua maioria, a bilhetes-postais ilustrados da primeira metade do século XX.

 

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