As cidades do futuro e a perspetiva das redes

É bem possível que assistamos à formação de redes de vilas e cidades mais pequenas do que as CIM atuais

Volto ao tema das cidades do futuro (ver a minha crónica de 10 de dezembro de 2020 no Sul Informação sobre a região-cidade do Algarve). A massificação turística em curso obriga-nos a olhar para as cidades do futuro de uma forma muito mais criteriosa em ordem a salvaguardar a qualidade de vida e o nosso bem-estar.

Além disso, estamos no princípio de 2023 e numa década com acontecimentos que nos marcarão para sempre. É o tempo das grandes transições – climáticas, energéticas, ecológicas, alimentares, digitais, demográficas, migratórias, laborais, securitárias – que terão impactos devastadores sobre muitos aspetos da nossa vida coletiva e que, por isso, exigem que façamos o rescaling das nossas comunidades locais e regionais mais desprotegidas.

É também uma década singular porque reúne volumosos recursos financeiros – PT 2020, PT 2030, PRR 2026 – os quais requerem uma especial exigência no que diz respeito à governação multiníveis e a toda a orgânica nacional e regional de gestão dos fundos europeus.

Um dos tópicos centrais desta agenda 2030 reporta-se ao que designo como os pontos de regionalização, ou seja, a dinâmica interativa entre os níveis regional (NUTS II) e sub-regional (NUTS III/CIM) de governo e administração e, em especial, em resultado dessa interação, a evolução da comunidade intermunicipal (CIM) para uma nova configuração cidade-campo que eu designo como região-cidade. Vejamos, então, um pouco da filosofia política das cidades do futuro e, em particular, a abordagem territorial pela perspetiva das redes.

Em primeiro lugar, a filosofia política diz-nos que a economia financeira globalizada é, cada vez mais, extraterritorial, que a sociedade digital desencadeia uma crescente desintermediação e desmaterialização da administração do território e que a política, ao contrário, se sente, cada vez mais, acantonada e confinada nos limites territoriais da sua legitimidade eleitoral; este desequilíbrio, por demais evidente, empurra a sociedade política para a defensiva, para o populismo e o nacionalismo, tendo em vista proteger os limites territoriais que delimitam a sua representatividade original.

Em segundo lugar, a filosofia política também nos diz que uma abordagem territorial pela perspetiva das redes – centralizadas, descentralizadas e distribuídas – pode ser aplicada às cidades do futuro e, em especial, à região-cidade como rede policêntrica, distribuída e colaborativa; os principais vetores de uma cooperação estrutural na região-cidade dizem respeito a uma geoeconomia das redes e suas interligações, a saber: redes e interligações da economia verde e circular, redes e interligações da nova mobilidade urbana, redes e interligações do ecossistema tecnológico e empresarial, redes e interligações de serviços ambulatórios e da cooperação transfronteiriça, redes e interligações das indústrias criativas e culturais.

Em terceiro lugar, a abordagem territorial pela perspetiva das redes diz-nos que é imperioso aumentar a sinergia e reduzir a entropia das relações entre espaços e territórios, aprimorar a sua inteligência coletiva territorial e adequar a respetiva intensidade-rede; a cidade-região é a cidade urbano-industrial da 1ª modernidade, vertical e radial, periurbana e suburbana, invasiva e discriminatória, a região-cidade é a cidade inteligente e criativa, policêntrica e distribuída, uma rede de pequenas comunidades inteligentes, inclusivas e colaborativas da pós-modernidade e da 2ª ruralidade.

Daqui decorrem as linhas mestras da ação do ator-rede respetivo: promover as interligações, acertar o passo da intensidade-rede com o envolvimento das comunidades implicadas, usar a inteligência e a imaginação para ligar as pontas soltas da matriz de fluxos e fomentar a capilaridade de um território em busca de sentido e propósito para uma geografia desejada e um destino comum.

Em quarto lugar, a abordagem territorial pela perspetiva das redes depende diretamente do investimento feito na smartificação do território; num primeiro nível, a simples otimização de recursos na provisão de serviços públicos, num segundo nível, a criação de um ambiente inteligente na educação-ensino-formação de toda a população, num terceiro nível, a promoção de plataformas digitais made in tendo em vista a criação de uma sociedade local mais participativa e colaborativa, por último, a criação de um ecossistema digital integrado orientado para a estratégia de desenvolvimento territorial da região-cidade.

Em quinto lugar, a abordagem territorial pela perspetiva das redes depende muito da evolução político-administrativa das próprias comunidades intermunicipais (CIM), em especial, no âmbito da lei nº50/2018 que transfere atribuições e competências para os municípios e as CIM; todavia, para lá desta transferência, importará saber se os municípios, eles próprios, desejam evoluir para um genuíno federalismo intermunicipal, um novo patamar para um governo dos comuns e um verdadeiro território-desejado; ora, sobre tudo isto paira ainda uma nuvem espessa e carregada.

Em sexto lugar, a filosofia política da regionalização, em especial, a interação dinâmica entre os níveis regional (NUTS II) e sub-regional (NUTS III/CIM); no primeiro nível vamos assistir, muito provavelmente, a uma reforma da administração regional desconcentrada do Estado e a formação de um executivo regional com base nas atuais CCDR, no segundo nível, iremos, talvez, assistir a um reforço das CIM com a correlativa modernização das estruturas das administrações municipais; resta saber se a dinâmica colaborativa entre os dois níveis estará à altura dos grandes desafios e transições desta década.

Em sétimo lugar, a filosofia política da integração europeia e a sua linha de rumo ao longo desta década serão determinantes para fixar o quadro geral das políticas públicas, em especial, no que diz respeito à união orçamental, aos recursos próprios (impostos), à formação de dívida conjunta europeia e à comunitarização de novas áreas de integração, como é o caso das alterações climáticas, da saúde pública e da segurança e defesa; acresce que falta ainda à União Europeia uma doutrina regionalista bem estabelecida em matéria de macrorregiões europeias, de bens comuns e mobilidade transfronteiriça, que abra uma janela de oportunidade para a próxima geração dos agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT).

Nota Finais

Aqui chegados, não sabemos ainda como se fará o rescaling da governação multiníveis em Portugal ao longo da década e muito menos se assistiremos à transformação das CIM em verdadeiras regiões-cidade.

No entanto, é bem possível que assistamos à formação de redes de vilas e cidades mais pequenas do que as CIM atuais, tirando partido das economias externas oferecidas por estas e aproveitando a sua contiguidade geográfica para formar genuínas regiões-cidade dotadas de um verdadeiro governo dos comuns.

E para tal basta pensar no que está em jogo com o governo dos comuns: o plano verde intermunicipal e o parque agroecológico, a oferta de bens comuns ambulatórios e itinerantes, o novo mix energético intermunicipal e as comunidades locais de energia, o ordenamento florestal e a silvicultura preventiva, o centro partilhado de recursos digitais e as plataformas de inovação, a gestão agrupada multiprodutos regionais, a nova escola de artes e tecnologias, o cluster de indústrias criativas e culturais, as áreas integradas de gestão paisagística, os mosaicos e as amenidades paisagísticas, os bancos de solos e os baldios, os condomínios de aldeias e a gestão da 2ª ruralidade.

Está, assim, mais do que justificada a razão de ser das cidades do futuro.

 

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