Martim Sousa Tavares: Orquestra deve crescer em «alcance social» para «tocar outros públicos»

Entrevista exclusiva do Sul Informação ao novo maestro titular da Orquestra Clássica do Sul e a António Branco, presidente da formação

Martim Sousa Tavares – Foto: Diana Tinoco | OSF

Martim Sousa Tavares é, desde 1 de Janeiro deste ano, o novo maestro titular da Orquestra que, até Abril, ainda se vai chamar Clássica do Sul. O seu primeiro concerto, com um programa que vai surpreender, está marcado para o dia 5 de Fevereiro, domingo próximo, às 18h00, no Teatro das Figuras, em Faro.

Fazendo seu lema uma frase de Santo Inácio de Loyola (“Ver novas todas as coisas”), é um pouco disso que o jovem maestro pretende para este novo capítulo da formação que, em breve, voltará a chamar-se de novo Orquestra do Algarve, numa espécie de «regresso às origens».

O Sul Informação entrevistou, em exclusivo, o maestro Martim Sousa Tavares, bem como António Branco, que é, desde finais de Abril do ano passado, presidente da Associação Musical do Algarve, entidade que gere e administra a Orquestra.

Da entrevista simultânea, ao longo de quase uma hora, ressalta que ambos partilham uma visão para o futuro da Orquestra. António Branco quer «renovar a relação da música com os públicos em geral», indo «à procura de públicos que ou estão muito distantes, em lugares longínquos, ou vivem em bairros sociais ou são jovens que frequentam outras coisas».

Martim Sousa Tavares, que confessa ter ficado com um «fraquinho» pela Orquestra algarvia desde que, em Setembro de 2021, com ela trabalhou como maestro convidado, concorda inteiramente: «Gostava muito que crescêssemos no lado pedagógico, no lado de alcance social e não apenas geográfico, de conseguirmos tocar de facto para outros públicos».

Mas quer também que a Orquestra se envolva com outros parceiros, como a Universidade do Algarve, para abordar de forma inovadora duas questões: a saúde mental e a desinformação e fake news. Como é que isso será feito? Como se trata destas questões através da música? O maestro já dá pistas na sua entrevista, mas a concretização é que explicará estas novas ideias.

Uma coisa é certa: a Orquestra vai sair das salas normais e dar um salto para espaços nada convencionais, como os bairros sociais de Olhão ou os locais onde estão os jovens, que pouco ou nada querem saber desta música. Vai também apostar em parceiros menos habituais, como o Algarve Biomedical Center…e outros de que ainda não pode falar.

A poucos dias da sua estreia pública à frente da Orquestra, o concerto de domingo em Faro será já uma forma de o maestro Martim Sousa Tavares mostrar as suas ideias. Mas, segundo ele, o que importa são os músicos talentosos com os quais está a trabalhar.

 

Sul Informação: António Branco, o que o levou a escolher o Martim como maestro nesta fase da Orquestra?

António Branco – Foram muitas razões e a escolha não foi feita só por mim. Esta foi uma decisão colegial, como aliás são as decisões na Orquestra, pelo menos desde que cá estou. Envolveu o diretor executivo, o João Parrilha, que é também uma novidade da Orquestra, a direção, mas também houve consulta aos músicos e alguns sugeriram o nome do Martim.

Mas o seu nome já estava no meu pensamento, por uma razão que se prende com a minha visão sobre a Cultura e a Arte e aquilo que me pareceu que era a necessidade da Orquestra nos próximos anos.

 

SI – E que necessidades são essas?

António – Pareceu-me que era necessário renovar a expectativa dos músicos relativamente ao repertório que iriam tocar. É perfeitamente normal que, numa Orquestra onde o maestro titular se prolonga por um certo tempo, as relações sofrem consequências dessa longevidade, sobretudo no plano artístico. Uma das consequências é os músicos precisarem, a partir de uma certa altura, de uma nova visão artística, de uma nova metodologia, de um novo estilo de abordagem às peças. Isso pareceu-me muito evidente quando cheguei à Orquestra.

Tenho uma grande admiração pelo maestro Rui Pinheiro, aliás tive o prazer de ser dirigido por ele quando fiz parte do coro. A decisão não teve nada a ver com a pessoa do Rui Pinheiro, teve a ver com a minha perceção daquilo que os músicos da Orquestra estavam a precisar: um novo impulso, uma nova visão, uma nova metodologia.

Por outro lado, eu próprio tenho uma visão da Cultura ou da Arte muito próxima de muitas coisas que eu ia ouvindo o Martim dizer em entrevistas em coisas publicadas, nomeadamente duas ideias que eu prezo imenso e que são também minhas, que eu adoto na relação com estas matérias: uma é de que a Arte – a Música, o Teatro, o Cinema… – a Arte e os artistas têm a obrigação de chegar a toda a gente, na medida em que isto é um bem que pertence a todos.

O que acontece relativamente à música chamada erudita – e este “chamada erudita” também resulta, por exemplo, de eu ter estado com muita atenção a uma série de programas que o Martim fez recentemente na televisão que se chamava «Tudo menos Clássica» – mas aí confirmei mais uma vez uma ideia que eu já tinha que é: há uma espécie de crise generalizada da música erudita porque está muito apegada a um certo público, que é muito fiel e até, em parte, conhecedor, e não está a haver uma renovação geracional da música erudita ou da música clássica, coisa que o Martim também tem dito. Corre-se o risco de, não havendo esta passagem de testemunho geracional deste bem extraordinário que é a da música clássica e erudita, nós virmos a perder cada vez mais público, ficarmos confinados a um número de pessoas que são fiéis, que estão sempre presentes.

A outra foi a ideia de que há um conjunto de pessoas que são muito desfavorecidas em todos os aspetos, mas que também ficam muito desfavorecidas em termos culturais. Como esta música é normalmente praticada em salas tradicionais, e esse conjunto muito vasto e anónimo de pessoas não frequenta esses espaços, como aliás os jovens na maior parte dos casos, então os artistas têm de fazer o movimento de ir ao encontro dessas pessoas e levar-lhes isto. Porquê? Porque, quem não conhece, não pode saber se gosta ou não gosta.

Estes dois objetivos – por um lado renovar a relação da música com os públicos em geral, por outro ir à procura de públicos que ou estão muito distantes, em lugares longínquos, ou vivem em bairros sociais ou são jovens que frequentam outras coisas, irmos à procura deles, saber onde estão e prepararmos concertos, iniciativas, especialmente pensados para que também eles possam usufruir.

Estas razões que acabei de dizer foram as essenciais para escolher o Martim. Se esta é a visão que nós temos para o futuro, o Martim assenta que nem uma luva, aliás levando muito mais longe esta ideia, porque é um músico, é um maestro, e sabe traduzir em coisas concretas esta ideia.

 

Martim Sousa Tavares – ©Enric Vives-Rubio

Surpresa mas muita simpatia pelo convite

 

SI – Martim, como é que encarou este convite para vir dirigir a Orquestra Clássica do Sul?

Martim Sousa Tavares – Foi com alguma surpresa, na verdade. Eu tinha tido uma experiência muito feliz com a Orquestra, nos últimos anos tenho andado a fazer a ronda das orquestras portuguesas enquanto maestro convidado e, na verdade, em nenhuma delas tive uma experiência tão feliz como com o Orquestra, de entrosamento profundo com os músicos e de enorme satisfação em vários níveis. Isto aconteceu em Setembro de 2021 e lembro-me de vir daí com esta sensação de ter já um fraquinho por esta Orquestra.

O convite veio quase um ano e meio depois, passou muita água por debaixo da ponte, mas ainda tinha esta sensação de amizade. Lembro-me de quando terminámos o último dos concertos que fiz, ainda estava a sair do camarim e alguns músicos já me perguntavam quando é que eu voltava. Quando me é feito este convite, apercebi-me imediatamente disto que o António disse, que há uma vontade coletiva por parte da direção, mas também dos músicos, de que eu me aproximasse da Orquestra e contribuísse para este projeto. Isso também me parece muito coerente com o meu percurso. A Orquestra é regional, serve um propósito bem estabelecido e que é diferente do de outras orquestras, como a da Casa da Música ou a Orquestra Gulbenkian, que são orquestras que tocam na sua sede, ali é a sua casa e chamam as pessoas à sua casa.

Esta nossa Orquestra tem uma natureza diferente: embora tenha uma sede, do ponto de vista administrativo, essa sede não é a sua casa, o único lugar onde recebe, a sua casa é o Algarve, enquanto região, em sentido mais lato até o Sul, se quisermos.

Para mim, é muito cara essa ideia, sinto-me em casa com este conceito de orquestras quase itinerantes, que são como veículos quatro por quatro: conseguem tocar para um público de teatro, pessoas com nível de habilitações académicas e de participação cultural mais elevados, como conseguem estar na Culatra, numa IPSS ou até num hospital a tocar para grupos de pessoas diferentes. E aqui tudo se joga na elasticidade das instituições, mas também das pessoas, na sua capacidade de lerem essas situações e de contribuírem com uma mediação eficaz, não só do ponto de vista comunicativo, mas também de uma leitura do que é que faz falta para estas pessoas, para uma participação mais plena.

Para mim, isto é um desafio mais interessante do que programar e dirigir uma orquestra que toca sempre no mesmo auditório. Francamente, não é uma coisa que me interesse. Acho até que, de todas as orquestras que há no nosso país, esta é a única que eu aceitaria neste momento, por esta razão. É um desafio que está muito à minha medida, onde posso crescer, testar algumas ideias.

O desafio foi, por tudo isso, acolhido com muita simpatia. Pedi ao António [Branco] e ao João [Parrilha] 24 ou 48 horas para pensar, porque, quando o convite me foi feito, já tinha muita coisa entre mãos, precisava de algum tempo para reorganizar a agenda, mas tinha muita vontade de o aceitar. Também por causa disso, até ao Verão não vou estar tanto com a Orquestra como estarei a partir daí. Nestes primeiros seis meses do ano, embora já me tenham na função de maestro titular – a música que a Orquestra toca é toda programada por mim, algumas coisas de mudança já serão evidentes – a minha presença física vai ser mais regular a partir de Setembro.

Isto para dizer que foi o compromisso possível, com uma enorme generosidade e disponibilidade de ambas as partes em acolher esta vontade mútua de trabalhar e em acomodar as necessidades específicas. Em boa verdade, já comecei a trabalhar regularmente com a Orquestra nos últimos meses, no sentido de preparar a transição, de dar alguns passos. Mas reitero aquilo que o António diz: há um entrosamento muito grande, para mim é um momento muito feliz este aproximar-se finalmente a concretização desta nova titularidade, que vai ser feita no concerto de dia 5. Será um regresso a esta Orquestra e a estes músicos, mas numa capacidade completamente diferente, numa relação também diferente.

 

SI – Já conhece todos os músicos com que pode contar?

Martim – Todos, todos não, porque, de Setembro de 2021 para cá, houve algumas mudanças. Sei que há, por exemplo, um violoncelista que não conheci e um trompista que também não conheci. Mas o grosso, acima dos 95% das pessoas que constituem a Orquestra, sim, já os conheço. Agora, conheci os músicos numa base de maestro convidado. É um bocadinho como ser convidado para ir a casa de alguém jantar: nós não vamos chegar lá e mudar a mobília de sítio só porque não nos agrada. Há uma forma de estar que é diferente. Embora a pessoa traga sempre a sua visão e tente que a Orquestra também comungue dessa visão.

Também nesse sentido vejo com expectativa este regresso ao Algarve, porque agora sei que é diferente, estamos numa relação para os próximos três anos e meio, pelo menos, por isso a perspetiva é completamente diferente, a minha abordagem também, assim como a vontade com que vou de ouvir a Orquestra com outros ouvidos, porque agora tenho de ser mais crítico, a médio e longo prazo.

Ou seja, não são coisas que eu tenho de resolver em dois ou três ensaios que me toca fazer para o concerto do dia 5, são coisas que vão ser identificadas e trabalhadas com tempo. Isso muda sobremaneira o meu ponto de vista. Diria que é muito entusiasmante a posição em que me encontro.

 

SI – Sabe se precisa de mais músicos, de mudar alguma coisa?

Martim – A equipa é aquela que é, não sinto a falta de mais músicos. Na verdade, umas das coisas que eu gostava de ir melhorando ou corrigindo na trajetória da Orquestra é que as orquestras de câmara – que é a natureza desta orquestra e da maior parte das orquestras portuguesas – muitas vezes sentem-se frustradas por não poderem tocar a música das orquestras grandes: a música romântica, sinfónica grandiosa, etc. Parece que se vão cansando de tocar aquele que é o seu repertório natural. Muitas vezes acabam por dar alguns passos em falso, a meu ver, que é aventurarem-se a tocar essa música sinfónica com poucos músicos, e, portanto, quase pela vontade de tocar uma boa sinfonia de Brahms, mas sem o efetivo instrumental para isso. Eu acho que não devemos fazê-lo.

Devemos aceitar, com alegria, que somos uma orquestra de câmara, que é um instrumento extremamente versátil, muito mais versátil que uma orquestra sinfónica, na medida em que são menos músicos, há uma coesão muito maior, uma capacidade de se ouvirem que é melhor, mais transparente na sua textura.

E aquilo que há é uma riqueza de repertório muito grande, que está adormecido e é praticamente desconhecido, e que eu gostava que a nossa Orquestra trabalhasse. Por exemplo, a questão das compositoras. Desde que eu estou a fazer a programação da Orquestra, só o meu concerto de dia 5 é que vai ter tudo música de “homens brancos mortos”. Esta questão da diversidade e da equidade, para mim, é muito importante.

Só isto é logo uma lufada de ar fresco, a programação que estamos a fazer: são peças novas que a Orquestra vai descobrir, mas também são peças do século XVIII e XIX, portanto escritas para esta formação. Que nos vão assentar como uma luva, mas que nos abrem aqui uma janela, deixa entrar uma lufada de ar fresco.

Eu não penso em substituir músicos ou em ir buscar mais músicos. Penso, sim, em dar a estes músicos uma dieta diferente, nova, estimulante e mais rica em nutrientes estéticos, do que aquilo que possa ter sido o caminho até aqui. Essa é uma forma de revalorizar todos os músicos, de eles se sentirem de novo interessados e também curiosos por aquilo que fazem e evitar caírem numa rotina. É a pior coisa que as orquestras podem ter, que é sentir que todos os dias estão a entrar num escritório e todos os dias picam o ponto das 9 às 5. Aí deixa de ser ar, passa a ser um exercício mecânico de repetição.

 

Martim Sousa Tavares – Foto: Diana Tinoco | OSF

“Ver novas todas as coisas”

 

SI – O que é que podemos esperar de novo da Orquestra com a sua direção?

Martim – Uma das coisas que vai ser visível, até porque o nosso contrato assim o determina, é que eu estarei apenas até 50% dos concertos, enquanto o anterior maestro titular Rui Pinheiro fazia consideravelmente mais. A meu ver, isto traduz-se numa maior diversidade de pessoas, de visões, que estão a entrar na Orquestra de forma regular e que fazem com que ela se mantenha sempre em xeque. Quando começam a ver o mesmo maestro pela frente muitas, muitas vezes, cria-se uma relação de quase demasiada proximidade, de alguma facilidade e previsibilidade. Ao trazer maestros vindos de fora, é uma forma de garantir que a Orquestra nunca baixa a sua forma, que vêm ideias novas, programação nova, que estamos aqui com uma dieta rica.

Uma outra ideia que eu gostava de trabalhar é identificar novos formatos de concerto, novos ciclos de programação. A Orquestra vai continuar a honrar os ciclos já tradicionais – os Concertos Promenade, o ciclo de música de câmara no Teatro Lethes – mas gostava que conseguíssemos encontrar novas formas de programar. Não é uma coisa já no imediato, porque ou próprio preciso de sentir os músicos, sentir o terreno, entender bem a forma como orquestra se relaciona com os seus parceiros, com os municípios, com a antecedência como estas coisas são trabalhadas.

Gostava muito que crescêssemos no lado pedagógico, no lado de alcance social e não apenas geográfico, de conseguirmos tocar de facto para outros públicos. Na verdade, as ideias mais disruptivas que trago são nesse sentido: procurar formatos diferentes, em horários diferentes, em lugares diferentes. Explorar diferentes formas de estar, sem deixar cair a ideia de que a Orquestra são estes músicos, é este talento que estamos sempre a celebrar.

O concerto de dia 5, que é um concerto com três peças apenas, é um programa bastante simples, mas é uma espécie de manifesto da minha parte, quero mostrar o que venho fazer com esta Orquestra, quais são as minhas ideias. De certa forma, estas três peças são a súmula disso mesmo. Uma das ideias tiro-a de uma frase de Santo Ignazio de Loyola, que é “Ver novas todas as coisas”. Portanto, não é por tocarmos música do século XVIII que isso nos deve parecer velho e cheio de pó. Nós podemos ver as coisas por outro prisma, levando esta mesma música para circunstâncias menos comuns.

Diria que, se calhar, a partir de Setembro, começarão a surgir estes novos formatos, que têm de ser pensados com algum tempo e algum conhecimento também, do meio em que se vão inserir.

 

SI – Para o concerto de dia 5 de Fevereiro, que compositores escolheu?

Martim – Vamos começar com uma peça do norte-americano Charles Ives, que embora seja um compositor nascido nos anos 70 dos século XIX, é um dos pais do Modernismo e da vanguarda do século XX. É uma figura muito curiosa, na medida em que ele foi corretor de seguros a vida toda e, nas horas livres, escrevia música, tão visionária, tão estranha, que nem ele próprio alguma vez imaginou que viesse a ser tocada. O facto de ele fazer isto como um hobby dava-lhe ainda mais liberdade, porque ele nem sequer se tinha de preocupar com a pragmaticidade de aquela música vir ou não a ser tocada. Ele escreveu algumas obras que são prelúdios para aquilo que virão a ser as maiores revoluções do século XX, mas nos anos 5, nos anos 10, portanto, muito, muito antes.

Vamos tocar a peça mais famosa do Charles Ives, que é The Unanswered Question, uma peça profundamente filosófica, que divide a orquestra em três grupos: a orquestra de cordas representa aquilo a que ele chama “o silêncio dos druidas”, que é uma espécie de verdade celestial, que não pertence ao mundo humano, pertence ao planeta, a uma existência mais sobrenatural. No fundo, representa a paz, a serenidade e a verdade, saber o que é que as coisas significam, saber qual é o significado da vida.

Perante esse silêncio dos druidas, que é uma coisa muito consonante, muito bonita, tocada pelas cordas de forma muito lenta, muito luminosa, há uma pergunta que é feita de forma insistente, por um trompete, que não vai estar à vista, só vamos ouvi-lo, que é assim uma melodia estranha. E essa pergunta representa-nos a nós, pessoas, que perante este mundo antigo e tudo isso que já cá estava antes de nós, não entendemos quem somos, não entendemos para onde vamos.

Tudo isto é contrastado com o grupo das madeiras da orquestra, que toca umas melodias muito intrincadas, que vão acelerando cada vez mais, que são claramente uma cacofonia, que são o plano mundano, humano, onde nós estamos enquanto pessoas. Esta pergunta divide-se entre um plano celestial e um plano mais sujo, mais dissonante. Representa-nos a nós, seres humanos, e as perguntas que nos fazemos.

É mais fácil ouvi-la que entender a minha explicação, mas, no fundo, é uma peça que nos ajuda a situar-nos a nós próprios enquanto pessoas, no tempo e no espaço em que estamos.

Esta peça não vai terminar com um aplauso, porque vamos pegá-la diretamente com uma peça do Ralph Vaughan-Williams, que é um inglês que nasce com dois anos de diferença do Charles Ives, e que é um neo-renascentista. No século XX, em Inglaterra esteve muito na moda olhar para o repertório inglês dos séculos XVI e XVII e voltar a trabalhar esse material. Ele escreve esta obra, Fantasia sobre um tema de Thomas Tallis – que era um compositor inglês do século XVI – em que ele usa esta música antiga, que soa de forma antiga, e dá-lhe uma roupagem nova, moderna, à luz do século XX. Aquilo que ele está a fazer é “ver novas todas as coisas”, é usar esse material antigo para lhe dar uma nova visão.

Fazemos a transição de uma coisa para outra. Diria que a escolha de uma e de outra também não é inocente porque elas pegam-se muito bem, têm esta camada de cordas que é difícil de explicar, mas que, depois, ouvido, vai fazer sentido.

Isto explica que vamos ser uma Orquestra atenta ao seu tempo, com um olhar crítico, porosa a nível estético, a nível de inclinações artísticas, vamos refletir o tempo em que estamos. Mas vamos também olhar para as coisas antigas, para aquilo que é a tradição, com olhos novos. Não vamos cair na rotina, vamos fazer tal como Vaughan-Williams fez.

Na segunda metade do concerto, temos a quarta sinfonia de Beethoven, uma sinfonia festiva, virtuosistíca, porque isto é para celebrar os músicos da Orquestra, não é sobre mim. É uma forma de acabar em bem, lembrando que este é apenas mais um capítulo que se inicia na vida desta Orquestra. Tocamos uma sinfonia muito sólida, que vai dar muito prazer tanto a quem toca, como a quem ouve.

Grosso modo, temos coisas novas e coisas que já conhecemos, coisas antigas e coisas que estão a ser retrabalhadas. De certa forma, é uma apresentação minha, mostrar aquilo a que venho, e por isso é que o concerto se chama «Concerto de Apresentação», não só para mostrar a minha cara, mas para mostrar as minhas ideias.

 

SI – E já está a trabalhar com os músicos da Orquestra para esse concerto?

Martim – Teremos ensaios logo nos primeiros dias de Fevereiro. O normal é uma semana de trabalho por cada programa.

 

António Branco – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Orquestra vai voltar a chamar-se “do Algarve”

 

SI – António Branco, um dos problemas da Orquestra costumava ser o do financiamento, como é infelizmente habitual nas coisas da Cultura no nosso país. Como está a Orquestra a esse nível?

António – Vou dizer uma coisa que não é muito habitual nestes meios: a verdade é que a direção anterior, presidente, administrador financeiro, deixaram-nos uma orquestra com uma saúde financeira invejável, confortável. Não quer dizer que nós podemos fazer tudo o que queremos, mas sim que não temos, pelo menos no horizonte mais próximo, nuvens negras.

Esta situação mais confortável também nos permite transformar isto numa oportunidade. Não tendo de pensar diariamente como é que se pagam as contas – houve momentos, bem lá mais para trás, em que era assim… – , temos oportunidade de perceber duas coisas: como é que podemos aplicar melhor os fundos que temos à nossa disposição, por um lado, e o Martim acabou de explanar melhor do que ninguém, a perspetiva de como é que esses fundos podem ser postos ao serviço de um plano mais alargado. Em segundo lugar, renovando a imagem e as práticas da Orquestra, e contando com o Martim Sousa Tavares como maestro titular, temos a esperança de angariar mais apoios financeiros para a Orquestra, por exemplo associados a projetos específicos, que podemos apresentar a grandes patrocinadores, a grandes mecenas.

Neste momento, temos garantido um subsídio permanente do Ministério da Cultura, temos o apoio permanente dos municípios que foram fundadores – Faro, Loulé, Tavira, Albufeira, Lagos e Portimão -, bem como da Região de Turismo do Algarve e da Universidade do Algarve, que nos dão um subsídio anual e não temos tido nenhum problema a esse nível. E depois ainda temos os associados apoiantes que são aqueles que vão estabelecer protocolos connosco para uma participação em menor dimensão que a dos fundadores, dois ou três concertos por ano. Já temos, neste momento, quase todos os municípios do Algarve envolvidos de alguma maneira com a Orquestra, além de outras entidades.

Para além disto que já está garantido, e naturalmente temos de nos bater para que não haja motivos para que estes apoios desapareçam, temos ideias para apresentar a entidades concretas, que nós estamos em crer que serão capazes de financiar projetos concretos muito interessantes.

A minha perspetiva é que seremos capazes de usar bem os fundos que temos, até porque são quase todos fundos públicos, temos essa obrigação. E aproveitar essa circunstância para, com esses fundos, redirecionar a visão da Orquestra, apoiada nesse orçamento confortável ou, pelo menos, não assustado.

A Orquestra é formada por 31 músicos com contrato de trabalho. Já há muito tempo que nós ultrapassámos a fase em que os músicos tinham uma prestação de serviço com a Associação [Musical do Algarve, proprietária da Orquestra] e portanto havia a possibilidade ou até a necessidade de grande variação.

Sendo uma Orquestra jovem e com as características que o Martim referiu, somos também, e ainda bem, um local para músicos jovens e muito talentosos crescerem e, eventualmente, crescendo, poderem querer ir para outras paragens. Isso é natural e é bem vindo. Há momentos em que saem músicos que concorrem a outras orquestras e lá ficam, muito bem cotados. Quer dizer que a nossa Orquestra é um bom laboratório para os músicos que quiserem vir para cá.

Depois, há concertos, há repertórios que exigem um reforço de instrumentos, Está perfeitamente previsto no orçamento anual que haja momentos em que o maestro titular diga: para este concerto nós vamos precisar de mais estes músicos. E são contratados para aquele concerto.

O Martim tem carta branca para fazer essas escolhas. Mas há aqui também uma novidade, que não é muito habitual nestas estruturas: nós afetámos um orçamento à direção artística e demos-lhe uma enorme autonomia para a gestão desse orçamento. Ou seja: a direção artística não tem de, caso a caso, perguntar se há dinheiro. Sabe o dinheiro que existe e tem a possibilidade de ela própria fazer a gestão, decidindo os concertos em que há reforços, os solistas que convida.

Claro que se a receita aumentar – se conseguirmos novos associados ou apoios especiais – também aumenta a receita da direção artística e a capacidade que ela tem de tomar decisões, em função dessa verba que venha a mais.

Esta é uma novidade que tem na base um princípio que, para mim, é inamovível: nós não podemos fazer com que os artistas estejam diariamente dependentes de saber se há ou não há dinheiro para fazer as coisas. Programar artisticamente é ter a possibilidade de ver à distância. E para o fazer, é muito importante que os artistas que têm de tomar as decisões possam saber que daqui a seis meses podemos fazer isto, daqui a oito meses queremos estar a fazer aquilo.

 

SI – A Orquestra começou por chamar-se “do Algarve”, a partir de certa altura mudou o seu nome para Orquestra Clássica do Sul, para tentar ir buscar apoios aos municípios e outras entidades do Alentejo. Isso vai manter-se?

António Branco – Essa decisão foi legitimada pela Assembleia Geral da Associação, que percebeu que havia, na altura, instabilidade no financiamento que vinha da região do Algarve e que era absolutamente necessário fazer qualquer coisa para não pôr em perigo a vida da Orquestra. Foi uma decisão legítima e pensada.

De facto, fez-se várias incursões e conseguiu-se alguns apoios. Acontece que não foram tão volumosos quanto se esperava.

Em segundo lugar, esta direção, ao fazer o balanço desse período em que nos chamámos Orquestra Clássica do Sul, pensa que nós podemos ter ganhado, por um lado, e ter perdido, por outro. Podemos ter perdido uma certa relação de identidade entre o território e a Orquestra. Na prática, isso não aconteceu, porque a Orquestra continuou a abranger o território do Algarve. Mas a designação tornou menos evidente este enraizamento e esta forte ligação da Orquestra à região.

Já foi tomada a decisão de retomarmos o nome de Orquestra do Algarve. A partir de 1 de Abril, todos os materiais, todas as plataformas, o logotipo, serão de novo Orquestra do Algarve. É um regresso às origens.

 

SI – É uma boa novidade, essa de deixarem de ser Orquestra Clássica do Sul…

António – …Ser do Sul e ter ali aquela palavra “clássica”. Nós não vamos deixar de ser do Sul, nem de ser a mesma Orquestra, até porque temos como núcleo central a chamada música clássica ou música erudita. O facto de estar no nome não nos restringia, porque a Orquestra sempre foi capaz de fazer outras coisas, mas como que predeterminava o olhar sobre nós. Basta ouvir o que o Martim disse para se perceber porque é que estou a dizer isso. Há um potencial de possibilidades artísticas que a simples designação Orquestra do Algarve faz respirar.

 

Martim Sousa Tavares – Foto: Diana Tinoco | OSF

Dos bairros sociais, às fake news e à saúde mental

 

SI – Martim, pode levantar um pouco do véu e revelar o que poderá ser a primeira atuação da Orquestra de forma diferente, num local diferente? O que irá acontecer e quando será?

Martim – É difícil dizer, porque a programação que estamos a fechar até ao Verão não apresenta propriamente nada de revolucionário. Eu e o António vamos de seguida conversar, porque eu propus um projeto em que tenho andado a dar alguns passos: gostava muito que a Orquestra se envolvesse com o meio académico e a produção de conhecimento, em dois aspetos: um é a questão da saúde mental, que é um tema que cada vez mais está na ordem do dia e as pessoas ganham novas ferramentas para se relacionarem com a saúde mental, e o outro é a questão da desinformação e das fake news, que não é nada menos revelante.

Eu gostava que a Orquestra pudesse ser um parceiro nestes discursos, para ajudar a entender e a enriquecer a discussão sobre eles, porque eles também podem ser traduzidos para música. Tenho na minha cabeça dois concertos preparados, um para cada tema, e uma intervenção também enquanto orador e pessoa que fazer a mediação entre estes discursos e depois pô-la em prática na música.

Gostava muito de ver a Orquestra envolvida com a Universidade do Algarve, que, de resto faz parte do seu núcleo de fundadores, e também convidar fundações, outros parceiros, outras vozes, para virem ao Algarve e construirmos aqui um fórum à volta disto.

É uma coisa que gostaria de pensar para o último trimestre deste ano e que, no fundo, é na minha opinião algo de novo: a Orquestra não estar a fazer um concerto só porque sim, a tocar esta música só porque é bonita, mas termos um objetivo onde queremos chegar, um objetivo intelectual, de cidadania, de avanço do conhecimento e da capacidade crítica das pessoas, que depois é traduzido em música, em beleza.

É um projeto que vejo na Orquestra o parceiro perfeito, a plataforma perfeita para o fazer, pela sua relação com a Universidade do Algarve. Se tudo correr bem, é uma ideia que sei que vamos pelo menos tentar.

 

António Branco – Para além destes temas para os quais o Martim nos desafiou e aos quais reagi logo muito bem, porque gosto muito desta ideia de a Orquestra se associar a grandes temas sociais, mostrando que há muitas maneiras de falar sobre as coisas e intervir sobre elas e a música é uma delas, gostaria muito de envolver o ABC [Algarve Biomedical Center] e a Orquestra no grande tema que é o envelhecimento ativo. Porque acho que temos ali um excelente parceiro, que tem uma enorme experiência na investigação e de ação sobre o envelhecimento ativo. A Orquestra pode ter uma palavra a dizer sobre isso também, porque a música tem um papel a cumprir nessa grande missão social de melhorar a forma como as pessoas envelhecem.

Depois, tivemos um desafio da Câmara de Olhão cujo protocolo ainda não está assinado, mas estamos em crer que o será em breve, e que também nos satisfez muito: é a Orquestra ir aos bairros sociais. Ir lá, ao sítio, e fazer lá música para as pessoas. Não sabemos ainda em que condições é que isto pode ser feito, nem quando será, mas a verdade é que isto foi o desafio que a Câmara de Olhão nos colocou para se associar à Orquestra e que nós aceitámos com imensa alegria.

Há ainda o desafio que parece abstrato, mas não é tanto assim. Nós temos aqui em Faro e no Algarve uma população estudantil universitária que ronda as oito mil pessoas. Onde é que elas andam? Onde é que elas estão? Que espaços frequentam? Sei que o Martim tem já alguma experiência disto no seu passado recente. Não estou a dizer que seja para repetir seja o que for. Mas sei que é um bom desafio para o maestro Martim Sousa Tavares a Orquestra, ter iniciativas especialmente pensadas para ir ao encontro desses milhares de jovens que seguramente ouvem música, que seguramente vão a sítios.

Como vê, ideias não faltam! Ainda estamos a programar, a falar com as entidades, mas os projetos são firmes, não são simples ideias. Já vi que o Martim tem um perfil muito concretizador, eu também tenho e o João Parrilha igual. A conjugação de três pessoas muito concretizadoras vai fazer com que estas ideias e projetos sejam realidade.

 

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