Alta Mora, o espírito e a magia do lugar

Sentir a força da natureza e o espírito do lugar e, mais tarde, evocar esse dia maravilhoso, esse mistério quase mágico de um lugar denominado Alta Mora situado nos confins da terra algarvia

No tempo que vivemos, em plena era digital, os locais e os lugares diversificam-se e multiplicam-se. São os locais de residência (1ª, 2ª e 3ª residências), os locais de trabalho (presencial, teletrabalho, espaços de coworking, tiers-lieux), os lugares de recreio, lazer e visitação, os locais de compras e consumo, os locais do espaço público, os locais para as práticas físicas e desportivas, os lugares de fuga, de culto e peregrinação, os locais de manifestação artística e cultural, os lugares de realidade aumentada, virtual e imersiva, os lugares e as plataformas de ensino e formação, etc.

Como é evidente, muitos destes locais e lugares fazem parte das rotinas e micro liberdades do nosso quotidiano e dos pequenos nadas gratificantes que a vida tem e, nessa medida, não são, digamos, uma revelação do espírito e do génio do lugar.

Mas outros locais e lugares possuem essa força da natureza, esse encantamento mágico, uma inspiração quase poética, próprios de uma visita que nós iremos classificar como inesquecível. Em nome de uma hermenêutica dos lugares, começa aqui a nossa breve viagem até ao lugar de Alta Mora, ao Festival das Amendoeiras em Flor, na freguesia de Odeleite do concelho de Castro Marim.

O filósofo Friedrich Nietzsche disse um dia que “a arte existe para que a realidade não nos destrua”. Hoje, em 2023, eu diria que a filosofia da paisagem, as artes e a cultura da natureza existem para que a realidade material e virtual não nos destrua, sobretudo o excesso de realidade, medido, agora, pelo excesso de realidade virtual e aumentada.

Registemos alguns traços marcantes desta hermenêutica dos lugares:

– A mobilidade acelerada, a virtualidade aumentada, a topoligamia e a ubiquidade crescentes são as características dominantes do nosso tempo;

– Assistimos, doravante, a uma dialética intensa entre espaços de fluxos e espaços de lugares; nesta dialética intensa emergem as grandes urbes verticais que misturam a velocidade e a vertigem com momentos prolongados de tédio, melancolia e depressão;

– Estamos numa fase crescente de nomadismo digital, em direção a formas híbridas de relação laboral e, cada vez mais, em regime precário de trabalho temporário; estas tendências conduzem-nos até à cidade líquida onde tudo é transitório, passageiro e efémero, isto é, liquefeito (a modernidade líquida de Zigmunt Bauman);

– Nesta sociedade vertiginosa onde um número crescente de pessoas procura estratégias de fuga e escape, crescem, igualmente, as manifestações culturais, as artes de rua, as artes digitais, as artes da paisagem e as artes em geral, mas, também, uma nova relação cidade-campo, uma 2ª ruralidade, que procuram, em conjunto, lutar diariamente contra esta melancolia vertical, periurbana e suburbana, das grandes urbes metropolitanas,

Neste contexto, que eu aqui designo de duplo movimento, o espírito dos lugares já não se obtém da sua substância, mas da sua itinerância, ou seja, o indivíduo é constantemente convocado para participar em uma série de eventos realizados em não-lugares, em terceiros lugares e em hiper-lugares, lugares mais produzidos do que recebidos.

Neste duplo movimento, caminhamos para uma espécie de paradoxo ou hibridismo do quotidiano, algures entre a rotina e a melancolia do dia a dia e a liberdade e reinvenção do quotidiano através das micro liberdades e das pequenas revelações que a vida ainda guarda, transpostos, muitos deles, para o campo das artes e da cultura.

Um fator de esperança adicional que merece ser assinalado, é que, neste quadro de duplo movimento, em busca do nosso equilíbrio pessoal e da nossa melhor geografia sentimental, vamos, também, descobrir a força dos laços fracos por intermédio das nossas vivências comunitárias e relações nas comunidades virtuais e essa descoberta será, por vezes, uma verdadeira e gratificante revelação.

Em síntese, vivemos em constante duplo movimento, entre a realidade material e a realidade virtual, entre a excitação das bolhas e a depressão das fugas, entre a melancolia das nossas rotinas e a alegria das nossas descobertas, uma espécie de paradoxo ou hibridismo do quotidiano, e esta duplicidade é, porventura, o traço mais marcante e impressivo do nosso tempo.

É certo, a modernidade e a globalização fizeram dissipar o espírito dos lugares, em alguns casos desapareceu a sua singularidade e muitos lugares perderam o seu encantamento. A reinvenção dos lugares do quotidiano é, para a nossa saúde mental, um verdadeiro imperativo categórico. Não vou invocar aqui e agora as palavras do arquiteto Christian Schultz para quem o espírito do lugar passará a ser a arte do lugar, uma arte que o marketing cultural e turístico, tarde ou cedo, aproveitará para segmentar, diferenciar e explorar comercialmente. Em Alta Mora essa invocação não se aplica.

Muito simplesmente, quero apenas convidar todos os algarvios e todos os leitores do Sul Informação a fazerem uma visita a Alta Mora, ao Festival das Amendoeiras em Flor, entre os dias 3 e 5 de fevereiro, para poderem sentir a força da natureza e o espírito do lugar e, mais tarde, evocarem esse dia maravilhoso, esse mistério quase mágico de um lugar denominado Alta Mora situado nos confins da terra algarvia.

O nosso muito obrigado à associação local, ao Valter Matias, aos amigos, voluntários e idosos de Alta Mora, à Junta de Freguesia de Odeleite e à Câmara Municipal de Castro Marim. Bem hajam.

 

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