Sol na eira e chuva no nabal

O Governo deu a chave do galinheiro à raposa

Isto das consultas públicas é um aborrecimento e uma carga de trabalhos, mas, “noblesse e UE oblige” e a “coisa” acontece.

Mas acontece de uma forma desenhada para minimizar os problemas dos decisores. É assim que, invariavelmente, são lançadas por terra, mar e ar, consultas públicas no período das férias, sobre documentos com centenas de páginas.

E porque as férias não esperam, no último Verão até se assistiu ao paradoxo de uma consulta pública de uma entidade regional que foi divulgada em três sítios com três prazos diferentes para conclusão.

O documento “Simplificação de licenças e procedimentos para empresas na área ambiental” – Simplex Ambiental, também foi para consulta pública no período de 4 de Agosto a 16 de Setembro último e, como seria de esperar, passou praticamente despercebido à maioria dos cidadãos.

O prazo para a consulta pública foi curto para um processo que já tinha começado torto: o Simplex foi elaborado com contributos de operadores privados que beneficiarão com a proposta, enquanto a sociedade civil, nomeadamente as organizações ambientais, não foi chamada a participar para defender o interesse público.

Em resumo, o Governo, com esta discriminação, deu a chave do galinheiro à raposa.

A intenção expressa de «simplificação da atividade administrativa através da contínua eliminação de licenças, autorizações e atos administrativos desnecessários, numa lógica de ‘licenciamento zero’» é, à partida, necessária e urgente.

No entanto, meter no mesmo saco situações simples, misturadas com projetos complexos, que podem ameaçar e comprometer irreversivelmente os nossos ecossistemas, não augura nada de bom – por exemplo: aplicar o licenciamento zero para autorizar a reutilização de águas residuais tratadas de acordo com todos os parâmetros legalmente estabelecidos é significativamente diferente de isentar de Avaliação de Impacto Ambiental projetos de loteamento urbano.

O documento propõe igualmente que o deferimento tácito passe a ser a regra quando deveria ser a exceção, como tem sido até agora. Pretende-se diminuir os casos em que a avaliação de Impacto ambiental é obrigatória, impedindo a sociedade civil de se pronunciar em inúmeros processos que podem afetar o nosso futuro comum e, complementarmente, ainda se alarga o âmbito do deferimento tácito a todas as situações em que os prazos para a entidades públicas se pronunciarem sejam ultrapassados.

Não se pode confundir, ainda menos substituir, a eficiência dos processos pela rapidez na decisão desses mesmos processos.

A validade de uma AIA nunca pode ser medida pelo vetor Tempo, mas sim pelo Rigor da avaliação.

Ao “simplificar”, sem previamente criar mecanismos, ou modificar as condições de trabalho que conduzam a mudar comportamentos instituídos e permitam fiscalizar as práticas, está a manter-se e/ou a abrir caminho ao laxismo, já que os prazos podem continuar a não ser cumpridos, tendo como única consequência a substituição do processo de avaliação pelo deferimento tácito.

Além disso, colocar a responsabilidade da morosidade dos processo apenas no lado da administração pública, fazendo tábua rasa da realidade de muitas empresas e operadores serem, por seu lado, também responsáveis por essa lentidão, seja por falta de competências (várias), ou falta de condições, ou por deliberada não cooperação, é no mínimo ignorar a realidade empresarial portuguesa, ser conivente e lavar as mãos quanto à raiz do problema.

E a cereja em cima do bolo é o artigo 130, ponto 6, que confirma o deferimento tácito mesmo que não tenham sido pagas taxas e despesas. Espantoso!

Numa altura em que é crucial salvaguardar os nossos recursos naturais e ecossistemas e dar-lhes prioridade em relação aos interesses económicos de qualquer cariz, a administração quer “fazer-se de morta” e apostar na “corresponsabilização e autocontrolo por parte dos operadores”.

Basicamente, a administração quer o impossível: sol na eira e chuva no nabal – isenta-se de responsabilidades no atraso dos processos de licenciamento e acredita que os operadores vão ser bonzinhos e cumpridores.

O Simplex está, pois, claramente a nadar em contra corrente no que respeita a legislação comunitária ambiental e a sacrificar o património público aos interesses privados. Não admira, pois, que as organizações da sociedade civil sejam unânimes nas críticas ao documento.

Inclusivamente, foi lançada uma petição pública que considera que “o Simplex para o Ambiente é a mais grave ameaça à sustentabilidade do território de Portugal das últimas décadas” e pedia a intervenção do Primeiro Ministro no sentido de ser alterado o documento. Mas o Presidente da República, em vez de vetar, aprovou o documento…

 

 



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