No centenário de Gonçalo Ribeiro Telles

A sua vida foi dedicada a criar as bases para uma boa qualidade de vida no nosso país

Neste ano da graça de 2022, comemora-se o centenário de nascimento de diversas personalidades marcantes do século XX e alguns ainda do século XXI, em Portugal. Recordemos Nuno Teotónio Pereira, Agustina Bessa Luís, José Saramago, José Augusto França, Eduardo Lourenço, Adriano Moreira, e os noventa e nove anos de Fernando Távora – uma geração de ouro.

A esta geração pertenceu Gonçalo Ribeiro Telles, que faleceu aos 98 anos e que teria completado o seu centenário a 25 de Maio passado.

A sua vida foi dedicada a criar as bases para uma boa qualidade de vida no nosso país, dando a este conceito – que escolheu para a própria designação do habitualmente chamado Ministério do Ambiente -, para lá da relevância da qualidade do meio envolvente, também a necessidade para o ser humano, individual e colectivamente, ter acesso a outras componentes, que têm a ver com a sua vivência espiritual. E uma dessas necessidades é a criação de beleza, de agradabilidade, mas igualmente de suporte dos valores da sua cultura.

Esta busca da beleza e do equilíbrio entre o homem e a natureza é a essência da arquitectura paisagista que, melhor do que outras formações académicas, sabe interpretar aquilo que o Prof. António Covas acaba de trazer à colação, como a poiética das intervenções no território tornado paisagem.

No seguimento do Mestre de todos nós que foi Francisco Caldeira Cabral, e entre os outros primeiros grandes académicos desta profissão, como foram Azevedo Coutinho, Edgar Fontes, Ilídio de Araújo, Álvaro Dentinho, Viana Barreto, Sousa da Câmara, Gonçalo Ribeiro Telles evidenciou-se pela sua personalidade multifacetada, pela sua criatividade, pela exuberância das suas concepções e pela luta persistente, constante, ao longo de décadas, a favor da melhor utilização do espaço biofísico em que habitamos – e sempre no respeito pela carga cultural secular com que convivemos em cada metro quadrado das nossas paisagens.

É igualmente lamentável que tanta gente se refira à herança deixada por Ribeiro Telles e hoje, disfarçado entre meias palavras e meios actos, se esteja a desmontar tudo quanto ele deixou – e que era simplesmente o corpo basilar duma política de ambiente que garantia a defesa do território pela manutenção da biodiversidade contra a especulação e contra o abuso dos recursos, em especial os recursos renováveis e raros como são o solo e a água.

Durante umas quatro décadas a estrutura legislativa formada pela Reserva Agrícola Nacional (RAN), Reserva Ecológica Nacional (REN), PDM, PROT e Rede Nacional de Áreas Protegidas conciliou a Conservação da Natureza (CN) com o Ordenamento do Território (OT) e colocou o nosso país na linha da frente da modernidade ecológica e ambiental, capaz de se defender dos especuladores e dos excessos do mercado desregulado.

Estas virtudes eram, por outro lado, também o fermento da inveja e da impotência da agricultura industrial, da silvicultura industrial das celuloses e dos loteamentos especulativos que muitas Autarquias e o próprio Estado central iam remoendo.

Já em 1962, quando, por causa da guerra colonial, havia o slogan “Portugal não está à venda”, Caldeira Cabral proclamou que “não estaria à venda por grosso mas a retalho”, aludindo aos loteamentos abusivos que já se estavam a praticar no Algarve – afinal foram as bases da arquitectura paisagista que estiveram sempre no cerne da politica ambiental.

Mas, nas últimas duas décadas, assistimos ao assalto a tudo quanto significava garantia do médio e longo prazo: a desagregação do sector agro-florestal, que ninguém bem formado entende que se pratique, e o desmantelar da política ambiental com a CN menorizada e encostada às” florestas”, numa farsa para UE ver, e o OT desligado e mudado para outra tutela meramente política, quando ele era o cerne da intervenção ambiental.

E, perante as preocupações quotidianas dos portugueses, com problemas de sobra na sua sobrevivência do dia a dia e uma luta política cheia de palavras enganadoras, vai-se assistindo à invasão insidiosa dum liberalismo económico mal disfarçado que corrói o futuro equilibrado do Pais.

No centenário de Gonçalo Ribeiro Telles, não poderia haver melhor comemoração senão o retorno às perspectivas de médio e longo prazo que durante toda a sua vida ele proclamou e defendeu.

O Poder hoje entende o que isso quer dizer… mas não lhe agrada. Viva a bagunça nacional!

 

Fernando Pessoa com o seu mestre Gonçalo Ribeiro-Telles – foto de arquivo

 

Autor: Fernando Santos Pessoa é arquiteto paisagista e engenheiro silvicultor…e escreve com a ortografia que aprendeu na escola

 

 



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