Algarve, o risco de uma região rica com gente pobre dentro

Não gostaríamos que o Algarve se tornasse uma sociedade de visitantes e trabalhadores precários e intermitentes, em vez de uma sociedade de residentes vivendo uma vida digna

É muito curioso observar as ambivalências e contradições que são expressas pela opinião dos nossos interlocutores a propósito dos grandes problemas do nosso tempo.

Na verdade, a confluência e o impacto das grandes transições – climática e energética, ecológica e alimentar, digital e laboral, demográfica e migratória, geopolítica e securitária, turística e cultural – criam uma espécie de nevoeiro cerrado e não nos deixa ver claro o tempo e o espaço dos pontos de impacto.

Essa opacidade e ambivalência são, pois, um traço recorrente no quotidiano da nossa vida em comum. Se no discurso corrente ainda é possível chegar a um consenso, já no plano das realizações concretas encontrar um ponto de equilíbrio entre os diferentes ciclos de vida daquelas transições é uma tarefa extraordinariamente complexa e difícil.

Este facto é muito sensível porque torna problemático dispor de uma narrativa consistente sobre a linha de rumo e o futuro da sociedade algarvia, que seja um discurso de esperança positivo e mobilizador. Vejamos alguns exemplos destas ambivalências e contradições.

Na sociedade algarvia, a perspetiva porventura mais ambivalente e contraditória é aquela que interliga um recurso escasso, a água, com as atividades económicas dominantes, a atividade turística e a agricultura intensiva de regadio que consomem muita água.

É muito difícil, em cada momento, encontrar os pontos de equilíbrio entre aquelas atividades e a produção e o consumo de água e, em consequência, programar e realizar as alterações necessárias em relação aos modelos de turistificação, agricultura intensiva e gestão de recursos hídricos.

Face a uma grande alteração de paradigma, os atores diretamente envolvidos parecem preferir a administração de ciclos políticos mais curtos e, em consequência, proceder por aproximações sucessivas, não surpreendendo, portanto, que todos os algarvios alimentem, em dose variável, as suas próprias ambivalências e contradições de acordo com a sua posição relativa enquanto produtores, trabalhadores e consumidores.

Dito isto, quero apenas salientar que, na exata medida em que a sociedade algarvia depender cada vez mais do turismo intensivo e da agricultura intensiva e, portanto, dos empregos diretos e mal remunerados criados por essas atividades, mais os algarvios se converterão em free raiders na sua própria região e, dessa forma, acrescentando efeitos não intencionais, externalidades negativas e danos colaterais sobre o seu próprio modo de vida e o dos seus concidadãos.

Não o fazem, todavia, voluntariamente, porque são simples trabalhadores e consumidores, a maioria pobres, de um modelo económico totalmente extrovertido que privatiza benefício e socializa prejuízo, que retém regionalmente pouco capital e receita fiscal, que vende parcelas crescentes do seu território a grupos e fundos não residentes.

Mas as ambivalências e contradições surgem em todos os pares de transições referidas no início. O novo regime climático, o regime carbónico do antropoceno, deixa pairar uma nuvem imensa sobre o próximo mix energético da região algarvia e a ambivalência é evidente quanto à linha de rumo que deve ser prosseguida.

As hesitações sobre a agroecologia, os serviços de ecossistema e as áreas de paisagem protegida deixam pairar uma nuvem imensa sobre o sistema-paisagem e a gestão do mosaico agro paisagístico regional no que diz respeito a um modelo agroalimentar mais diversificado e menos intensivo.

A grande transformação digital e o regime laboral das principais atividades económicas regionais, onde predomina o trabalho precário e intermitente, deixam pairar uma nuvem imensa sobre o rendimento per capita da região e a grande assimetria da sua distribuição.

A demografia e as migrações são uma verdadeira incógnita e a qualquer momento podemos sofrer fortes movimentos erráticos de população vindos do norte de África, mas, também, de movimentos regulados com origem na CPLP, além de podermos assistir a uma exportação de mão de obra qualificada para outros destinos, em troca de alguns nómadas digitais que vêm aproveitar o bom clima algarvio.

A geopolítica internacional e a segurança coletiva, de que a guerra na Ucrânia e as sanções associadas são o melhor exemplo, deixam pairar uma nuvem imensa e sombria sobre os fluxos de pessoas, bens, serviços e capitais, mas, também, sobre a próxima ordem internacional.

Neste contexto, importa estar atento e relembrar a extrema a volatilidade dos fluxos turísticos. A recessão na Europa em 2023 é um primeiro aviso à navegação.

O turismo intensivo e as indústrias culturais e criativas (ICC) estão diretamente correlacionadas e a formação de um cluster ICC na região é cada vez mais provável a curto e médio prazo, porém, muito cuidado com a artificialização, a gentrificação e a gamificação da sociedade algarvia, pois não gostaríamos que se tornasse uma sociedade de visitantes e trabalhadores precários e intermitentes, em vez de uma sociedade de residentes vivendo uma vida digna.

Nota Final

As grandes transições, pelos seus efeitos assimétricos duradouros, exigem que se realize um ensaio de prospetiva regional que seja capaz de elencar e perspetivar as principais variáveis exógenas e endógenas do processo de desenvolvimento regional que condicionam a linha de rumo para a próxima década, sob pena de improvisação e navegação à vista, muitas medidas de mitigação e remediação e poucas ou nenhumas reformas de fundo.

A década do PRR e do PT 2030 e, ainda, do que falta do PT 2020, não se repetirá, e será um crime de lesa-pátria não aproveitar estes fundos substanciais para realizar, enfim, as reformas estruturais e a diversificação da base económica que a sociedade algarvia reclama há tanto tempo.

Sem estas reformas, existe o risco real de uma economia acantonada entre o turismo intensivo e a agricultura intensiva, uma região cada vez mais rica com gente cada vez mais pobre.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 



Comentários

pub