Alagoas Brancas e a falta de estratégia

O que ali se está a passar resulta de uma enorme incapacidade das nossas “autoridades” de planeamento e ambientais e de uma enorme falta de visão estratégica da Câmara Municipal de Lagoa

Terraplanagens já começaram. No céu, um bando de ibis-pretos – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

A destruição da pequena, mas importante, zona húmida a que, nos últimos anos, se começou a chamar Alagoas Brancas, junto à cidade de Lagoa, está em curso. Lá estão as máquinas em movimento, a terraplanar, a afastar terras, a escavar. Ao lado, no que ainda resta do paúl, o barulho e o movimento das máquinas faz levantar voo, em grande susto, centenas e centenas de íbis-pretos, bem como outras aves.

Os batráquios e os cágados, coitados, esses não levantam voo, nem podem fugir para lado nenhum. Mas já voltarei a eles.

Esta era a única área que sobrava das chamadas Alagoas, depois de décadas de aterros e drenagens para construir primeiro um campo de futebol, depois o recinto da Fatacil, armazéns e instalações industriais, casas, hipermercados.

É o golpe final numa zona alagadiça no Inverno e muitas vezes seca no Verão, como sempre acontece nas lagoas temporárias típicas da paisagem mediterrânica. Habitats que até são protegidos, dizem…

Parece que vão ali surgir mais armazéns, mais um hipermercado.

Para mim, que há décadas me interesso e participo ativamente em lutas ecologistas, o que ali se está a passar resulta de uma enorme incapacidade das nossas “autoridades” de planeamento e ambientais e de uma enorme falta de visão estratégica da Câmara Municipal de Lagoa. E não é só falta de visão estratégica do atual executivo, de maioria PS. É também do anterior executivo municipal, de maioria PSD. Ninguém se arme em virgem ofendida ou em cavaleiro branco porque todos têm culpas no cartório!

Sim, porque o que ali se está a passar, na urbanização das Alagoas Brancas, resulta de uma operação que começou a ser delineada há quase duas dezenas de anos, e que até seguiu todas as regras legais, passou pelos pareceres de todas as entidades – nomeadamente Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve, Agência Portuguesa do Ambiente/ARH, Instituto de Conservação da Natureza e Florestas -, que nunca se manifestaram contra a destruição desta zona húmida.

Houve até os obrigatórios períodos de “discussão pública” do projeto. Mas, durante todos estes anos, em que o futuro deste último reduto estava a ser desenhado, nunca ninguém se pronunciou contra. Ninguém.

Há mais de 15 anos escrevi eu um artigo no jornal onde então trabalhava, ainda antes da construção dos atuais hipermercados Aldi e Apolónia, quando estava prestes a ser aprovado o plano de pormenor para a zona, que previa o desvio da vala de drenagem, como veio a ser feito, a construção dessas superfícies comerciais e a abertura de uma nova estrada, com respetivas rotundas, impermeabilizando mais solo. Para esse artigo, falei com a Câmara, falei com a CCDR Algarve, falei com organizações ambientalistas. Nunca nenhum leitor reagiu, que eu saiba, a essa notícia. E o plano avançou…

Depois dessas construções, apenas restou, lá no meio, a tal zona das chamadas Alagoas Brancas (que é o nome da urbanização para lá prevista, não sei se estão a ver a ironia da coisa…).

Como durante muitos anos nada aconteceu, as aves, os batráquios, os cágados, as plantas (algumas delas raras) foram tomando conta daquilo, graças à água que, naquela antiga zona de lagoa temporária, ali se acumulava quando chovia.

As aves fizeram as delícias de quem gosta de as observar. Para mais porque as Alagoas Brancas passaram a ser pouso frequente de enormes bandos de ibis-pretos, aves que eu nunca antes tinha visto por cá.

Foi preciso que o terreno fosse vedado, que se começasse a falar em terraplanar tudo aquilo para começar a construir, para que as pessoas acordassem para o problema, há cerca de uma dezena de anos.

Num extremar de posições, a Câmara de Lagoa escudou-se na inevitabilidade da construção, tendo em conta os projetos aprovados, argumentando que a sua interrupção significaria a obrigação de pagar uma elevada indemnização (supostamente de mais de 1 milhão de euros) aos promotores da urbanização.

Do outro lado, o movimento de defesa das Alagoas Brancas assestou as suas baterias contra a Câmara, exigindo a paragem do projeto e lutando, até pelas vias legais, por isso.

Na minha opinião, a atual situação resulta da falta de estratégia da Câmara de Lagoa. Mais uma vez, insisto, uma falta de estratégia que não é só de agora, é de sempre, seja qual tenha sido o partido ou o presidente a ocupar a cadeira do poder.

É que, se houvesse estratégia, teria sido tempo, há uns 15 ou 20 anos, de perceber que uma zona húmida como as alagoas, às portas da cidade, deveria ser preservada e até valorizada, integrando-a num parque urbano de que Lagoa precisa desesperadamente (e não é o recinto da Fatacil, por mais arranjos cosméticos que lhe façam, que alguma vez poderá desempenhar essa função!).

Se houvesse estratégia, ter-se-ia pensado que, numa altura em que tanto se falava em problemas causados pela construção em leitos de cheia ou zonas alagadiças, ou em que até já se falava em alterações climáticas, não seria boa ideia permitir o crescimento da cidade para cima das alagoas.

Se houvesse estratégia, ter-se-ia também pensado que construir hipermercados e armazéns num sítio destes não seria a melhor solução de ordenamento do território e para o crescimento da cidade.

Se houvesse estratégia, Lagoa não seria uma cidade-dormitório sem vida própria, com um centro desertificado, sem gente, nem comércio, nem pontos de atração para investidores, moradores e visitantes, salpicado de pseudo soluções casuísticas que vão saindo da cartola da Câmara como se de coelhos mal amanhados se tratasse.

Há que pensar Lagoa, como um todo, nos mais variados aspetos. Não basta colecionar rótulos, prémios e bons lugares em rankings feitos com base em dados que na realidade nada traduzem. É preciso pensar como se quer que Lagoa esteja e seja no ano de 2023, mas também no de 2030, 2040 e 2050…

A moderna gestão das cidades não se compadece dos curtos ciclos eleitorais.

É preciso criar massa crítica e não ter medo das ideias que dela possam surgir, para verdadeiramente pensar o que se quer para Lagoa, no futuro, que é já amanhã.

Ainda antes de acabar, quero voltar a falar de um aspeto importante. Nesta questão das Alagoas Brancas, não é só à Câmara de Lagoa que se deve apontar o dedo. Aliás, bem vistas as coisas, a autarquia é porventura quem menos culpa tem disto tudo, porque está no fim da cadeia.

Os dedos deviam ser apontados, desde logo, à CCDR Algarve, à APA, ao ICNF, ou seja, a todas as entidades que, ao longo dos anos, escudando-se em pareceres e mais pareceres, nunca se preocuparam em verdadeiramente defender aquilo a que até por lei eram obrigadas a defender: as zonas húmidas.

Querem saber o cúmulo do ridículo? Agora que as máquinas já lá andam a terraplanar tudo, o ICNF vai mandar um ou dois dos seus funcionários para apanharem alguns cágados (que são espécie dita protegida, coitados…) e os salvarem das garras do progresso. Ninguém sabe quantos cágados há na zona, por isso tanto faz apanhar 20 como 50, dará no mesmo: é uma operação só para inglês ver.

O problema é que, com a volta que as coisas levam e com a falta de estratégia, qualquer dia nenhum inglês quererá ver Lagoa…

 

 

 



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