A humanidade desfila por Odemira com turbantes

Espetáculo estreou-se na quinta-feira, dia 10, mas também há exibições este sábado e domingo, com entrada livre

Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

Ali, os símbolos católicos já quase nem existem. Não há altar, nem cruzes. Nas paredes, restam vestígios de pinturas de vários santos. A Igreja da Misericórdia, em Odemira, tem um ar inacabado, despido. Está fechada ao culto, mas as suas portas estão agora de novo abertas. No centro, estão seis homens, todos sikhs. Vão colocando os seus turbantes, enquanto dezenas de pessoas enchem a igreja, mostrando que, acima de qualquer religião, a interculturalidade é um valor essencial no Litoral Alentejano.

O “Bowing” nem é uma total novidade por aquelas bandas.

O espetáculo de Madalena Victorino, inserido na programação do “Lavrar o Mira e a Lagoa”, já andou, no ano passado, por São Teotónio, onde levou centenas de pessoas a conhecerem melhor, por exemplo, a Laxmi, o Milan ou o Rajendra.

São pessoas com quem muitos se cruzam, na rotina dos dias, mas que nem sempre compreenderão. São todos imigrantes asiáticos, vindos de países tão distantes como o Nepal, a Índia ou o Bangladesh.

Uns trabalham na agricultura intensiva; outros estudam. Alguns, como a Laxmi e o Rajendra, participam, outra vez, no “Bowing”.

Depois de São Teotónio, este «espetáculo cheio de humanidade» está em Odemira para três dias de exibições, sempre com o mesmo objetivo: aproximar culturas.

 

 

Tudo começa no Jardim Ribeirinho de Odemira, junto à ponte pedonal, já depois de a noite cair na vila.

O grupo chega e a heterogeneidade espanta logo qualquer um: há indianos, nepaleses, portugueses, bengális.

«Isto é para ti. Eu vivo aqui. É na terra: não é no céu», dizem, para início de espetáculo.

E as palavras ecoam-nos na memória porque, ao longo de cerca de três horas, é essa a mensagem que se passa: os milhares de imigrantes asiáticos que moram em Odemira (em 2020 eram quase 10 mil, hoje serão muitos mais) são parte viva daquele concelho e têm de ser integrados.

«O que nós queremos é aproximar estas pessoas. Eu acho que dentro do projeto há uma dinâmica muito boa, estamos mais próximos, portugueses, imigrantes… Temos uma relação de abertura, de partilha de emoções, de problemáticas, de sonhos», diz Madalena Victorino.

Ao longo do espetáculo, que terminará na Igreja da Misericórdia com a comunidade sikh, é ela quem vai comandando as operações.

Do Jardim Ribeirinho de Odemira, partimos para o centro da vila. Os espectadores são recebidos num grande largo, junto ao Mercado Municipal.

«Venham dançar!», convida Madalena. E logo dezenas se juntam ao baile, com músicas orientais, cantadas pelo jovem Muhammad Shoaib.

Naquelas horas, essa aproximação cultural que norteia o espetáculo é claramente atingida. Basta assistir para o sentir. Mas nem sempre é assim.

 

 

«A Câmara de Odemira está num momento muito interessante, de abertura e trabalho destas questões, mas o que eu sinto é que, das pessoas, ainda há muita reserva em relação a esta presença que é forte», lamenta Madalena Victorino.

A programadora cultural assume que o fluxo de imigrantes «é grande» e isso tem os seus impactos.

«As populações, os locais, estão a enfrentar essas mudanças, a tentar digeri-las, e estou a tentar contribuir, com a minha arte, para essa aproximação cultural», acrescenta.

Colocarmo-nos na pele dos milhares de imigrantes que chegam a Odemira é um passo. É isso que se faz no “novo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras”, uma das outras etapas do “Bowing”.

O cenário é a antiga residência de alunos da Escola Secundária de Odemira que está fechada. Foi ali que moraram os estudantes, que vinham de localidades do interior do concelho, onde não havia transportes públicos.

O espaço, desativado há anos, foi reaproveitado pelo “Lavrar o Mira e a Lagoa” para também satirizar o longo processo burocrático que enfrenta qualquer imigrante quando chega a Portugal.

Numa das salas, há um homem, sentado à secretária, rodeado de papéis, simulando um trabalhador do SEF.

 

 

Noutra, encontramos Laxmi que, em português e em nepalês, conta a história das fotografias que tira ao céu, a partir da paragem de autocarro do Almograve, onde mora.

O espetáculo aproxima-se do fim e um dos pontos altos também.

A Igreja da Misericórdia abre portas e, lá dentro, seis homens, todos da religião sikh, com representação «muito forte» em Odemira, vão colocando os turbantes na cabeça.

Muitos dos espectadores estão de telemóvel na mão para registar o momento, certamente pouco comum, mesmo num território com cada vez mais imigrantes asiáticos.

O “Bowing” chegaria ao fim daí a minutos e de forma inesperada. Uma das bailarinas, Maria Inês Lopes, também co criadora do espetáculo, partiu um braço durante a atuação, obrigando à interrupção e à chamada do INEM, causando muita preocupação entre os restantes elementos do elenco.

Mas nem esse contratempo impediu as centenas de pessoas que assistiam e participavam de saírem deste espetáculo com a certeza de que a aceitação do outro, do que é diferente, tem de ser um farol.

Hoje, sábado, e amanhã, domingo, 12 e 13, há mais, a partir das 19h00.

 

Fotos: Pedro Lemos | Sul Infomação

 

 

 

 



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