Uma tristeza que d(estr)ói….

«Destaco, com tristeza, com profunda e magoada tristeza, aqueles que se escudam em argumentos que só posso qualificar de patéticos, apontando dados de investigações, relatórios, estatísticas sobre a ocorrência de crimes, para desculpabilizar uma instituição»

Fez agora um ano que escrevi para a Ecclesia um texto sobre a temática da pedofilia na Igreja Católica. Saía, nessa altura, o relatório francês, sobre os casos de abusos dentro desta instituição, desde os anos 50 do século 20.

Um ano depois, tornam-se públicos novos dados importantes da Comissão Independente, criada pela Conferência Episcopal Portuguesa, para estudar esta temática e recolher informações e testemunhos no nosso país.

Vemos notícias diárias sobre o assunto, em que se descobrem casos; se identificam nomes, mais ou menos conhecidos e ocupando cargos na hierarquia portuguesa, ou não; se contam histórias tristes e desoladoras das vítimas.

Os jornalistas fazem o seu trabalho como podem, creio. E peço que não baixem os braços, pois, ao contrário do que muitos pensam e afirmam, eles não têm uma agenda contra a Igreja. Terão, quando muito, uma agenda contra os crimes e os criminosos. Ou quando põem a descoberto políticos corruptos, juízes que não cumprem a sua missão, dirigentes desportivos vigaristas e tantos outros, não fazem o que devem? Louvo o seu esforço e só desejo que seja verdadeiramente empenhado, que não fiquem pelos trabalhos mais fáceis, mas investiguem, como é próprio da sua profissão, TUDO.

Conseguir chegar ao âmago de cada narrativa, de cada facto, não será fácil, porque, naturalmente, os infratores não querem ser conhecidos e, infeliz, mas compreensivelmente, as vítimas não desejam reviver aquilo por que passaram e que guardaram, na maioria dos casos, no silêncio dos seus corações, procurando construir uma normalidade sempre periclitante, porque assente no que, não foi mais, do que uma violação.

Há quem se remeta ao silêncio, que assim, se torna “falante” e nada esclarecedor. Por outro lado, as declarações de alguns são transformadas em anedota, porque apenas podem ser risíveis, de tão tolas e despropositadas (e nem vale a pena citar nomes, pois estou certa de que os identificam).

Outros (poucos e bem!) têm a coragem de enfrentar as câmaras de TV, de dar entrevistas, de explicar que desenvolveram procedimentos corretos… Apesar de fazerem o que está certo e, reforço, deve ser feito – COMUNICAR! -, são apanhados no turbilhão das críticas. E estas, também é do conhecimento de muitos, frequentemente são motivadas pelas peleias internas, pelos ódios de estimação, pelas vinganças ocultas e que escondem misérias e pecados sérios.

Somam-se opiniões, convicções, presunções, juízos. E quando me refiro a estas maneiras de expressar o pensamento, destaco, com tristeza, com profunda e magoada tristeza, aqueles que se escudam em argumentos que só posso qualificar de patéticos, apontando dados de investigações, relatórios (como os da APAV), estatísticas sobre a ocorrência de crimes, para desculpabilizar uma instituição, cuja missão evangélica, porque conferida, na visão dos crentes, pelo próprio Cristo, é dá-Lo a conhecer e, assim sendo, dar a conhecer o Seu maior ensinamento, proposto na recomendação: «Amai-vos uns aos outros. Como eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros» (João 13:34).

Como é possível pensar que outros crimes podem desculpabilizar um que seja destes casos? Desde quando a minha culpa pode ser excluída, ou diminuída, pela culpa dos outros?

Quem assim se manifesta ainda não percebeu várias coisas, que são duras, mas que devem ser assumidas com retidão e coragem: houve (e desejo que não haja atualmente, mas temo que assim não seja) uma política de encobrimento destas situações dentro da Igreja Portuguesa, Espanhola, Americana, Australiana, Francesa, Irlandesa, Alemã, mundial.

Isso, infelizmente, faz correr o risco de que essa atitude possa corresponder a uma matriz identitária da instituição, uma instituição que, para fora, sempre se colocou na posição de quem é um reduto moral para todos os temas.

Assumindo essa posição, a Igreja Católica tinha o dever de especialíssima proteção dos mais fracos e frágeis, sempre com vista a restituí-los à sua dignidade inicial, que, note-se, nunca perderam, mas que tinha de ser defendida, com todas as forças, no seio e fora da instituição, que afirma ser o espaço seguro e de amor total a todos. E isso não aconteceu.

As pessoas que não puseram em prática o tal mandamento que atrás referi, o maior para todos os católicos, em nome desta Instituição, criada e desejada sempre Santa, acabaram por corromper a sua imagem. Custa dizer, mas conspurcaram-na, traindo a missão de Cristo Redentor, a tal missão evangélica, que nunca pressuporia rebaixar, degradar os mais desprotegidos.

E quando se chega ao ponto de culpabilizar as vítimas, de comparar o número de crimes, de esgrimir estatísticas, só se aumenta a tragédia. “Os outros também fizeram”, dizem as crianças para se desculpabilizarem, quando sabem que erraram. E o que lhes ensinamos? Sei que sabem bem a resposta!

A normalização do mal só o pretende transformar em bem. Tal atitude em qualquer ser humano é má, mas em alguém que acredita que deve amar o seu próximo como a si mesmo (Tiago, 2:8), que o amor procede de Deus e que aquele que ama nasce de Deus e conhece a Deus (1 João 4:7-8), é pior ainda.

Não se pode suportar tudo (como se dizia “noutros tempos” às mulheres agredidas, humilhadas e violadas pelos seus maridos, porque isso não é amar)! Não se pode esconder tudo, qual herança trágica de eras que, há muito, deviam ter acabado, mas que persistem em espreitar, atrás da capa de uma deturpada visão do certo e do errado.

Todos temos muito que refletir e olhar para nós próprios. Sofro pelas vítimas. Sofro, até, pelos agressores, sobretudo aqueles que são verdadeiramente doentes e deveriam ter acompanhamento especial.

Mas não sofro por quem desculpabiliza e oculta. Estes fazem-me olhar para a cruz de Jesus e perceber porque a aceitou e porque sofreu o seu peso, o rasgar das Suas carnes, as quedas, a morte lenta e agonizante; fazem-me perceber o olhar Dele e de Sua Mãe, aceitando a morte iníqua e excruciante do Filho inocente. Ele não fugiu, não se escondeu. Tomou a cruz e viveu-a, a cada segundo, para redenção de todos os pecadores. Por mim, que também o sou. Mas essa condenação torna-se mais odiosa, quando Ele morre, uma e outra vez, por pecados como estes, que me levam a compreender a dor, a morte e a dimensão imponderável do Seu sacrifício.

Dizia no tal texto escrito há um ano, que a minha mãe me ensinava: «Sabes, filha, quando fazemos mal e percebemos que o fizemos, é um ato de nobreza pedir desculpa e procurar reparar o mal que fizemos».

Foi isso que vi em todos os gestos e sinais do Papa Francisco, que dizia aos franceses ser preciso «assumirem as suas responsabilidades para garantir que a Igreja seja uma casa segura para todos» (Audiência-geral, 6/10/2021).

São esses os sinais que quero ver na Igreja e nos crentes. Sinais que me façam contemplar o rosto de Cristo ressuscitado e esperançoso, porque é num mundo melhor que acredito, num mundo onde há lugar para todos, porque todos são parte da família de Deus.

Que Nosso Senhor tenha piedade, misericórdia e compaixão de todos, especialmente dos que, sendo católicos, sentem uma tristeza que d(estr)ói…. Se puderem, tenham pena destes que, como eu, nestes dias já chorámos muito, já nos questionámos muito, já nos sentimos perdidos. Mas olhamos para o Alto, com esperança e pedimos que o Santo Espírito sopre, quente e esclarecedor, aguardando um novo arco-íris, «sinal da aliança eterna entre Deus e todos os seres vivos» (Génesis, 9:16).

Ah! Não me refiro, nem por sombras a girafas ou elefantes. Não tendo sido dotados do tipo de inteligência que possuem os animais, são seres incapazes deste tipo de coisas e poderiam ser modelos de comportamento para tantos, que desdenham a criação…

Nota: Este texto é resultado de várias partilhas, com amigos que, como eu, por estes dias sentem uma imensa tristeza. Agradeço-lhes por serem sinal de Deus na minha vida, porque de formas diferentes e como eu, sentem este espinho dos olhares “de cima para baixo” dentro da instituição. Luís, Miguel, Bruno, obrigada. Em memória do Jorge e de todos os meus familiares que me legaram um exemplo notável de vida cristã.

 

 

 



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