Há universalidade bastante num poema

Ensinei-lhe algumas palavras, tentando cavá-las por dentro, para que ele pudesse entrar nelas e entender

Quando leio poetas estrangeiros, ou tento traduzir o que escrevo, há sempre uma dúvida que se levanta: estarei a ser uma casa completa a cada transcrição? Faltarão telhas e janelas para a sua perfeita construção?

No outro dia, um amigo paquistanês, que não fala nem entende português, ouviu a minha poesia e os seus braços arrepiaram-se. Pediu-me se eu podia declamar para ele. As lágrimas subiram-lhe aos olhos e disse-me que não entendia uma única palavra, mas que sentia entender que, de certeza, era algo que nos chamava para viver de forma calma esta vida. Pelo menos era isso que ele queria depois de a ouvir.

Depois disso, ensinei-lhe algumas palavras, tentando cavá-las por dentro, para que ele pudesse entrar nelas e entender. Depressa fazíamos a ligação a palavras em urdu, e a coisa entendia-se, mas sentia que a escavação ficara a meio, e por isso só lá coube metade de um corpo – metade de um entendimento.

Pedi-lhe também que me mostrasse poetas e me traduzisse alguns poemas. Daquilo que me contou, reinava a paixão, os amores perdidos, tudo guiado por um Deus que eu não vivo. Por isso, só pude espreitar para dentro daqueles poemas, pelas janelas universais, o resto fiquei a olhar do lado de fora, e de fora as coisas são mais sonhadas do que habitadas.

Prova disso são as palavras que trago de cada viagem, mas que nunca usarei no meu dia a dia. Como ‘maningue’, que em Moçambique se utiliza para expressar muito. Mas ‘maningue’ torna-se mais do que um muito, é um gingar com a intensidade das coisas que não faz tanto sentido dito a quem nunca as dançou. Mas gosto de a trazer sempre comigo, num exercício para a imaginação e lembranças.

Outro exemplo, é a iniciativa na qual participei – Poesias do Mundo, no Festival MED, em Loulé. Uma mesa estendeu-se para receber poesia turca, espanhola, ucraniana, romena e portuguesa. A poesia não era traduzida, era essa a premissa. Para além do espanhol, eu não fiz mais do que apenas sentir o que cada outra língua me disse e eu consegui absorver, porque eu não estava dentro delas.

Mas disseram qualquer coisa que me ressoou e me fez querer saber o verdadeiro significado, ou pelo menos chegar mais próximo dele, deixar lá os olhos um bocado, descansar os braços.

A Festa dos Anos de Álvaro de Campos celebra-se dentro de uma multiculturalidade que toca em nacionalidades como o holandês e o japonês, passando pelo excerto “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto.“(Aniversário) traduzido em várias línguas, estendendo-se além Tavira (em Glasgow e em Brasília), e isso fascina-me. Como se as palavras fossem apenas um meio de transporte, e o mais importante tivesse sido o encontro destas pessoas com a simplicidade deste poeta que deixa a liberdade para quem o recebe, independente de alfabetos e culturas.

Fernando Pessoa escrevia em português e inglês. A última coisa que escreveu foi “I know not what tomorrow will bring” (“Não sei o que o amanhã trará”). Ninguém sabe o porquê, mas eu gosto de pensar que escolheu a língua mais universal nos nossos dias (talvez não nos dele) para expressar aquilo que de mais primário nos acompanha a vida inteira – a inevitabilidade de não sabermos o amanhã.

Por isso, por mais que a poesia obedeça a um ritmo, nela se formem músicas e existam padrões que a queiram moldar, a tradução pode ser a tentativa curiosa e humana de chegar mais próximo, criar uma casa perfeita, ou uma ponte mais sólida. Por isso, não tenho dúvida de que as palavras aproximam as pessoas e a poesia molda essa casa à volta delas. Casa que, longe de perfeita, ajuda a construir algo maior.

 

 
 



Comentários

pub