Abandono do interior?

«À violência do incêndio tem-se seguido a violência da linguagem estatística e a do silêncio, só quebrado pelo otimismo afrontoso do sr. Ministro José Luís Carneiro»

Passam três meses sobre o incêndio que destruiu parte da freguesia de São Marcos da Serra, no concelho de Silves, integrada na Zona de Proteção Especial da Rede Natura 2000. Os cálculos do ICNF informam que foram 1.321 hectares, contendo 903 ha de povoamentos florestais, 37 de agrícolas, 381 de matos.

São estas as informações oficiais a que é possível ter acesso sobre o incêndio, pois sobre:
– Origem do incêndio? Não se conhece.
– Cálculo dos prejuízos? Não se conhece.
– Medidas de emergência? Não se conhecem.
– Medidas de estabilização dos terrenos e limpeza das linhas de água? Não se conhecem.
– Medidas futuras para a resiliência da floresta e proteção dos povoados? Não se conhecem.

À violência do incêndio tem-se seguido a violência da linguagem estatística e a do silêncio, só quebrado pelo otimismo afrontoso do sr. Ministro José Luís Carneiro.

Esta segunda-feira, veio a Faro congratular-se com a “grande eficácia e eficiência no uso dos meios” no combate aos incêndios e afirmar que, ainda assim, dada à dimensão dos fogos que lavraram em Gambelas e em São Marcos da Serra, estes integram o conjunto que “a nível nacional estão a ser avaliados, para procurarmos compreender o que se passou, tendo em vista melhorar e aprender com eles.” (Algarve teve menos 72% da área ardida do que em 2021 e primou pela «eficácia», a ler aqui no Sul Informação).

De facto, a tragédia pode sempre ter um lado positivo, sobretudo para quem não a vive diretamente. E os incêndios são uma fonte prodigiosa de conhecimentos, como de resto já mostrou, de forma exaustiva e esclarecedora, o relatório sobre os incêndios de 2017, elaborado pela Comissão Técnica Independente (ler aqui e aqui), onde nada ficou por dizer ou por compreender.

Sr. Ministro, se me permite, fica esta sugestão de leitura e, já agora, a propósito da eficiência e da eficácia, a leitura do último relatório do ICNF, em que se conclui que “o ano de 2022 apresenta, até ao dia 15 de outubro, o 4.º valor mais reduzido em número de incêndios e o 5.º valor mais elevado de área ardida, desde 2012”.

Mas, sejamos justos: esta insensibilidade não nos é alheia.

Vejamos as diferenças: em Pombal, a Câmara Municipal colocou uma equipa multidisciplinar no terreno para fazer o acompanhamento e levantamento dos prejuízos e danos (ler: Câmara faz levantamento dos danos dos incêndios).

A Associação de Desenvolvimento Terras de Sicó, que reúne os Municípios de Alvaiázere, Ansião, Condeixa-a-Nova, Penela, Pombal e Soure, assumiu imediatamente o compromisso “de reivindicar medidas urgentes que minimizem as perdas patrimoniais e económicas sofridas pelas populações e tecido empresarial.”, solicitando de imediato uma audiência à ministra da Agricultura e Alimentação e outra à ministra da Coesão Territorial (ler: Terras de Sicó quer apoios para fazer face aos danos provocados pelos incêndios).

O incêndio da Serra da Estrela, que atingiu vários concelhos, levou à declaração de situação de calamidade para o território, e chegam-nos, pelos meios de comunicação social, as notícias sobre verbas a aplicar até junho de 2023, as reuniões do governo com as autarquias locais, medidas para as autarquias, empresas e famílias afetadas, apoios de emergência para o território, apoio a pequenos agricultores, que, não tendo atividade registada, tiravam rendimentos do cultivo da sua terra e vão receber 1153 euros por família (ler: Serra da Estrela vai receber quase metade dos 200 milhões aprovados pelo Governo). Oxalá, todas se concretizem.

E por cá? Quem, no Algarve, assumiu tais preocupações ou compromissos? Quem é que assumiu a defesa e o cuidado das vítimas dos incêndios? Quem é que está a delinear o plano de recuperação do território, em articulação com os proprietários e as entidades que intervém no território?

Dir-me-ão: mas há apoios em curso.

Há e temo-los divulgado. A 19 de agosto (sexta-feira), a Câmara Municipal de Silves divulgou a existência de candidaturas, a realizar digitalmente, para o apoio extraordinário aos criadores das espécies bovina, ovina, caprina e equídeos afetados pelos incêndios rurais. Estas candidaturas encerravam a 24 de agosto (quarta-feira seguinte).

Três, foram três dias úteis. Nem que estivéssemos a falar de um quadro de acesso e literacia digital plenos, tal medida poderia, alguma vez, ter a ambição de chegar a todos.

A 23 de Setembro, abriram, para todo o país, as candidaturas de apoio à reconstituição ou reposição do potencial produtivo das explorações agrícolas danificadas, correspondente a animais, plantações, máquinas, equipamentos, armazéns e outras construções de apoio à atividade agrícola, que terminará a 22 de novembro próximo (mais informações aqui: Balcão de Beneficiário/PDR 2020).

Pergunto: quais as instituições públicas que estão no terreno a divulgar, a esclarecer e apoiar a realização destas candidaturas?

Para setembro, esteve prometida uma reunião da Direção Regional de Agricultura do Algarve com os proprietários e interessados que… ainda não aconteceu.

Abandono do interior?

Abandono, sim, mas não pelos que pertencem à terra e amam o seu chão e fincam aí as suas raízes, inabaláveis, mesmo quando sob ordens de retirada, mesmo quando se veem forçados a fazer da cinza o único adubo da terra traída e em luto.

 

 

Autora: Patrícia de Jesus Palma é natural de São Marcos da Serra e coordenadora do projeto Rio Arade: Percurso das Fontes Boião-Azilheira – QRER

 

 



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