Turistificação e gentrificação na cidade de Faro

A qualidade de vida e a reputação de uma cidade mede-se também pela forma inteligente como trata os seus cidadãos mais vulneráveis e desfavorecidos e como respeita a sua dignidade como pessoas e cidadãos

Faro e a Ria Formosa – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Na sequência do meu artigo sobre massificação turística e uberização da sociedade algarvia (19 de maio de 2022) alguns leitores mais atentos fizeram-me chegar observações muito pertinentes acerca do que eu aqui designo por gentrificação da cidade e, em especial, da Baixa de Faro.

O leitor mais observador por certo já reparou na profunda transformação que está ocorrendo na cidade de Faro e, em matéria de urbanismo, podemos mesmo dizer que a procissão ainda só vai no adro.

Está aí a massificação turística da cidade, da Ria Formosa, do litoral, do Sotavento algarvio e de todo o Algarve, num período em que assistimos a profundas alterações do regime climático (Antropoceno), com sérias consequências sobre os solos, os recursos hídricos, a biodiversidade, o coberto vegetal, as atividades agrícolas, os serviços de ecossistema, as migrações da fauna e da flora.

Num contexto tão severo, não nos podemos deixar deslumbrar pela massificação turística, penso mesmo que se justifica plenamente uma reflexão mais estruturada e organizada sobre as formas de urbanismo e peri-urbanismo que queremos para a cidade de Faro e o seu concelho, antes que ela seja atropelada por formas de gentrificação excessiva e abusiva que não levam em linha de conta a proteção dos grupos mais sensíveis e vulneráveis da nossa cidade e do nosso concelho.

Para que conste, deixo aqui uma síntese ilustrativa, sob a forma de um decálogo da turistificação e gentrificação na cidade/baixa farense, a partir das observações e inquietações que alguns leitores me fizeram chegar.

1) Os residentes com licença de estacionamento têm muita dificuldade em estacionar perto das suas residências,

2) Os rooftops e as sunset parties fazem-se ouvir com uns decibéis muito acima do que é normal ou razoável e importunando os vizinhos, o que obriga algumas pessoas a ficar confinadas em casa ou a sair entre as 18h00 e as 22h00, em especial aos fins de semana,

3) Convidamos o leitor a fazer um passeio matinal pela baixa de Faro para apreciar o cheiro a urina, a vómitos e a lixo que as noites intensivas em turismo nos proporcionam,

4) O leitor já deve ter observado o caos das trotinetes espalhadas pelo espaço público sem qualquer respeito por regras simples de boa educação e, assim, criando problemas de circulação e mobilidade aos cidadãos mais idosos e deficientes,

5) O leitor facilmente constatará, como prática cada vez mais corrente, o assédio crescente dos operadores imobiliários, sobretudo sobre os residentes mais idosos que vivem ainda na Baixa de Faro,

6) O leitor facilmente verificará a mudança vertiginosa que está a ser operada no espaço público da baixa farense, com a mercantilização de todo o espaço público e um risco de colisão cada vez mais elevado entre residentes, visitantes, trotinetes, mesas, automóveis, fornecedores, onde praticamente não há lugar para a circulação dos mais idosos com problemas de mobilidade,

7) O leitor verificará também, facilmente, a pressão continuada sobre as rendas de casa, os quartos para alojamento de estudantes, a falta de habitação para jovens casais, a confusão em alguns condomínios que fazem airbnb clandestino, em resultado de uma pressão inusitada para o alojamento local, legal e ilegal,

8) O leitor verificará facilmente como o turismo, nas suas diversas manifestações, é a atividade económica que mais socializa os prejuízos ao remeter para o orçamento municipal e para o contribuinte municipal os seus efeitos externos negativos, não obstante, as taxas agora cobradas aos turistas; é preciso verificar se essa socialização dos prejuízos não tem um elevado custo de oportunidade municipal em detrimento de despesas públicas socialmente mais urgentes e prioritárias, como são aquelas que decorrem da recente transferência de atribuições e competências para os municípios,

9) O leitor poderá facilmente constatar como, de um ponto de vista sociocultural, a massificação turística provoca a erosão de um certo modo de vida tradicional ou, então, se bem conduzida, como pode servir para refrescar ou renovar esse modo de vida; esse balanceamento entre o tradicional, o contemporâneo e o cosmopolita deve estar presente e ser um sinal distintivo da cidade e o município deve dar provas concretas dessa coabitação feliz,

10) Finalmente, e ao mesmo tempo que constatamos a urbanização intensiva da cidade/baixa da cidade à boleia da massificação turística, assistimos também ao envelhecimento melancólico da população e à industrialização da velhice em lares de idosos e cuidados continuados que são as antecâmaras de uma morte anunciada, pois os serviços de saúde regionais, também eles, continuam à espera de ser igualmente turistificados; a cidade deve dar provas de que está, sobretudo, presente no que diz respeito ao acolhimento, aos cuidados e à hospitalidade dos mais necessitados e desfavorecidos.

Notas Finais

A qualidade de vida e a reputação de uma cidade mede-se pela hospitalidade, os cuidados e a forma inteligente como trata os seus cidadãos mais vulneráveis e desfavorecidos e como respeita a sua dignidade como pessoas e cidadãos, tanto ou mais quanto os seus visitantes ocasionais.

Por outro lado, ir à boleia de uma turistificação intensiva na sequência de um longo processo de confinamento de dois anos não me parece muito avisado como política de urbanismo a médio e longo prazo que deve integrar não apenas a baixa da cidade e sua envolvente, mas, também, os bairros, os anéis periurbano e suburbano e as respetivas freguesias do concelho.

Finalmente, não é muito sensato deixar a sorte de uma cidade, concelho ou região entregue à grande volatilidade e ao enviesamento de um único setor como o turismo, por mais importante que seja o seu papel na economia e renovação urbana da cidade.

No limite, seria muito desagradável que a cidade se dividisse em duas, a cidade dos turistas visitantes, sobretudo na baixa, na ria e na costa, e a cidade dos residentes, nos bairros e nos anéis periurbano e suburbano.

Não creio, no entanto, que a cidade, o concelho e a sub-região tenham desistido de ambicionar e apostar em outras linhas de rumo mais diversificadas e prometedoras. Compreendo a emergência e a contingência do período em que vivemos.

Não houve tempo para uma reflexão serena sobre o assunto, mas estamos ainda a tempo de a fazer. Um Observatório poderia dizer-nos como vai evoluir a erosão costeira nas praias, a ria que vai formosa mas não segura, a água para os primores da agricultura algarvia, a melhor ocupação da campina de Faro, o rural tardio das freguesias do concelho e o pomar tradicional de sequeiro, o aproveitamento agroflorestal do barrocal serra, as economias de proximidade da ecopolis Faro-Olhão.Loulé-S.Brás, enfim, os vários anéis que circundam a cidade e o concelho de Faro.

Imagine-se o que seria, por essa via, uma transição para a 2ª ruralidade como parte integrante do novo conceito de urbanismo da cidade e do concelho.

Lembro, a terminar, o artigo que escrevi no Sul Informação (16 de novembro de 2021) sobre a ecopolis de Faro-Olhão-Loulé-S.Brás, talvez valha a pena voltar a dar uma vista de olhos.

 

 

 



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