Odemira recebeu o Terras sem Sombra, o festival que se mantém «fiel às raízes»

Passeios à descoberta de lugares quase adormecidos e um emocionante concerto do pianista filipino Raul Sunico

Na igreja de Vale de Santiago, só estavam sete senhoras e uma criança, mais o padre, brasileiro. O padre teve de sair logo, depois de deixar palavras de boas vindas aos recém chegados, porque o esperava a missa noutra igreja de uma aldeia ali perto. As senhoras ficaram todas contentes quando o grupo de visitantes do Festival Terras sem Sombra entrou e, respondendo ao apelo deixado pelo sacerdote, comprou umas dezenas de rifas, dando uma boa ajuda ao objetivo de juntar 150 euros para restaurar uma imagem de São Pedro.

A cena passou-se no sábado à tarde, durante a visita ao património da aparentemente adormecida aldeia de Vale de Santiago, no interior do concelho de Odemira, no âmbito do Festival Terras sem Sombra.

É uma cena que tem tudo a ver com o espírito deste festival, que promove a partilha e leva o público à descoberta dos recantos mais desconhecidos do Alentejo.

«Mantemo-nos fiéis às raízes», garantiu José António Falcão, diretor geral do Festival, em entrevista à Rádio Internacional Odemira (RIO), à qual o Sul Informação também assistiu. «Tem havido grandes pressões para levarmos este festival a outras regiões – Algarve, Ribatejo – mas queremos manter-nos nesta nossa escala: pequeno é belo», acrescentou.

Hélder Guerreiro, presidente da Câmara de Odemira, salientou o facto de o Terras sem Sombra, na sua passagem por lá no fim de semana de 2, 3 e 4 de Setembro, ter estado em quatro freguesias do concelho (São Teotónio, Vale de Santiago, São Luís e Odemira) e ele próprio ter descoberto que «eu e a senhora Embaixadora das Filipinas temos amigos em comum».

«O Terras sem Sombra faz isso mesmo, liga territórios, liga culturas».

 

Tapeçarias filipinas T’nalak ao lado dos frescos da Igreja da Misericórdia

 

Mas porque falou o autarca das Filipinas? Porque foi a este país que o fim de semana do festival foi dedicado, com destaque para o concerto do pianista filipino Raul Sunico no sábado, à noite, numa Igreja da Misericórdia a abarrotar de gente – muitas pessoas ficaram no exterior – e em silêncio reverente e emocionado perante a mestria do músico.

A embaixadora Célia Anna Feria, sempre com um sorriso nos lábios, distribuiu simpatia e presentes. Falando em Português, a diplomata salientou que «desde a minha chegada como embaixadora das Filipinas em 2007, a embaixada tem organizado e participado ativa e voluntariamente em atividades e eventos que destacam as narrativas culturais únicas que ligam as Filipinas a Portugal».

Algumas dessas narrativas até são diferentes, mesmo quando assinalam «eventos e marcos históricos conjuntos», como as comemorações, em 2021, «em Portugal, do 5º Centenário da primeira circumnavegação, pela expedição de Fernão de Magalhães e Elcano, e, para as Filipinas, os 500 anos da vitória de de Mactan», batalha onde Magalhães morreu.

São, de qualquer modo, como fez questão de salientar, «narrativas e legados comuns», que estreitam os laços entre países e mesmo com as regiões, como o Alentejo, neste caso, à boleia do Terras sem Sombra.

«Tal como Odemira é conhecida pela sua herança inestimável de artesanato, como a cestaria e a tecelagem, as Filipinas também têm a sua tecelagem tradicional», acrescentou a embaixadora, apontando para as T’nalak, as coloridas peças de tapeçaria penduradas nas paredes da secular Igreja da Misericórdia, lado a lado com os frescos.

 

 

Antes do concerto, Raul Sunico, de 74 anos, considerado um dos maiores valores da pianística mundial, falou com o Sul Informação sobre a sua apresentação em Odemira. Ele que já se apresentou como solista nos principais palcos da Europa, Ásia e América, no seu estilo calmo e doce de falar, garantiu que a Igreja da Misericórdia (um templo maneirista do segundo quartel do século XVI, de rara planta ovalada) não seria assim tão estranha. «Não é um sítio muito diferente de alguns onde já tenho tocado, porque toco em muitas igrejas, nas Filipinas», garantiu, acrescentando que «a acústica é muito boa».

Para o programa, além de Mendelsshon, Debussy, Chopin, Albéniz, Liszt e Ravel, Raul Sunico escolheu uma peça do português Vianna da Mota, bem como duas peças de compositores filipinos – George Canseco e Francisco Buencamino.

O pianista declarou-se feliz por «mostrar o que a música filipina é à comunidade de Odemira», e muito agradado pelo facto de poder partilhar a sua música com uma comunidade mais pequena e, em geral, mais afastada dos grandes eventos culturais. «É um local muito diferente, muito excitante, gosto de tocar para públicos pequenos», garantiu.

No concerto, a acústica da sala e a mestria do músico permitiam ouvir os sons mais delicados saídos dos seus dedos. No fim, houve até dois encores, um deles o «Clair de Lune», de Debussy, fazendo, aliás, jus a um programa muito concentrado nos Românticos.

 

 

Depois da visita patrimonial à adormecida aldeia de Vale de Santiago, no sábado à tarde, tendo como guias António Martins Quaresma e José António Falcão, e das emoções do concerto de Raul Sunico no sábado à noite, a manhã de domingo foi dedicada à biodiversidade, completando assim o trio de temas interligados que dão corpo a este festival tão único.

Tratou-se do percurso «Da ponte do sol posto ao Pego das Pias: a Ribeira do Torgal”», orientada pelos guias Madalena Silva (geóloga) Augusto Lança (professor do curso de Agronomia do IPBeja) e Ana Luisa Simões (guia de natureza e co-autora do livro “200 Plantas do SW Alentejano & Costa Vicentina”).

No fundo, como já tinha explicado o diretor geral do Festival, tratou-se de uma «sessão de leitura do património natural da ribeira do Torgal, afluente do Mira muito importante do ponto de vista científico», desde a ponte construída nos anos 30 do século passado na estrada nacional 120, até ao Pego das Pias. «Pégo, como dizem os alentejanos, e não Pêgo», sublinhou o historiador António Martins Quaresma.

A ponte, acrescentou o profundo conhecedor da história local, permitiu finalmente «transpor um obstáculo natural muito importante». Olhando para a ribeira do Torgal lá no fundo, seca, sem pinga de água, custa a crer que o vale onde ela corre possa algum dia ser um obstáculo às ligações entre localidades e de Odemira até Lisboa. Mas, graças ao regime torrencial destas ribeiras, muitas vezes é mesmo assim. E a ponte acabou com essa dificuldade.

«É a primeira vez que vejo a ribeira do Torgal sem água…completamente seca. É chocante», lamentava a geóloga Madalena Silva.

 

 

Quanto ao nome da ribeira, houve quem quisesse saber se derivaria de “torga”, uma variedade de urze. Mas António Quaresma considera que não, que deriva antes do nome Targala, uma antiga circunscrição da época islâmica, onde esta zona se integrava.

Além do Pego das Pias, recordou também o historiador, mais à frente há o Pego da Laima ou Laimas, que eram «divindades aquáticas», pré romanas.

Apesar de não ter água, ao longo das margens da ribeira, a galeria ripícola mantém-se verde e frondosa, com altos freixos, amieiros, choupos, pilriteiros, junto ao leito, ou mesmo com sobreiros e até carvalhos-cerquinhos, um pouco mais longe da água que agora não corre. Estes carvalhos (Quercus faginea) são «aqui conhecidos em Odemira como carvalheiros», como recordou o historiador António Quaresma.

Nas barreiras que delimitam o caminho, vê-se as camadas geológicas. Augusto Lança explica: «as rochas que existem num determinado local têm consequências práticas». Os xistos, ali visíveis, «originam solos muito pobres e impermeáveis, solos esqueléticos», onde a agricultura pouco dá.

Por isso, os vales das ribeiras, onde se concentram os aluviões trazidos pelas cheias sazonais, as várzeas, são o local de excelência para uma agricultura que se fazia com métodos tradicionais, utilizando a água de forma sábia e regrada.

Na zona dos xistos, nesta «paisagem em montículo de toupeira, como na Serra do Caldeirão», é a produção silvo-florestal que garante o ganha pão. Como se estivessem a ouvir a conversa, andava por ali um rebanho de cabras, aparentemente sem pastor.

 

 

Ao fim de pouco mais de três quilómetros, o grupo de caminhantes do Festival Terras sem Sombra – mais de meia centena, muitos mais do que eram esperados, de tal modo que a Câmara de Odemira teve de mandar vir um autocarro maior – chegou finalmente ao Pego das Pias, esse sim, com alguma água.

Mas, em vez do sussurro do vento nas copas altas das árvores ou do chilreio das aves, foi o barulho de um numeroso grupo de jovens, com música bem alta, ali acampados de forma ilegal, com tendas, carros e carrinhas, que recebeu os caminhantes.

Porque se aproximava a hora de almoço, os jovens entretinham-se a preparar uma fogueira, debaixo de uma árvore…e só por causa dos avisos mais veementes de alguns caminhantes é que acabaram, entre resmungos e insultos em voz baixa, por apagar a perigosa fogueira.

O Pego das Pias situa-se em propriedade privada, mas com acesso livre (até agora). Uns dois quilómetros antes, à beira do caminho, a Câmara de Odemira colocou uma placa avisando para a proibição do campismo, caravanismo, fogueiras e outras práticas…mas, pelos vistos, de nada serve, uma vez que não há qualquer vigilância ou fiscalização.

O Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina «inclui a ribeira do Torgal, reconhecendo a importância deste habitat», sublinhou Ana Luisa Simões. «Mas nem parece que estamos num Parque Natural…», lamentou.

 

 

Vale de Santiago parece uma aldeia fantasma, sem ninguém nas ruas. A única animação, às 15h30 de um sábado de Setembro não muito quente, é um grupo de jovens asiáticos, provavelmente trabalhadores agrícolas, sentados nos bancos junto à igreja, para aproveitar o sinal de telemóvel, meia dúzia de homens no café de uma das ruas laterais e a mesma quantidade de mulheres a caminho da igreja, para a missa semanal.

Por isso, a chegada de um grupo com duas dezenas e meia de pessoas causa alguma estranheza aos poucos habitantes que passam de carro ou a pé.

A visita começou junto ao Poço Velho, ainda em funcionamento, onde o historiador António Martins Quaresma recorda que Vale de Santiago «pertenceu, historicamente, ao concelho de Santiago do Cacém».

No entanto, por estarem longe, «os seus moradores eram livres de comparecer na sede do concelho no Dia do Espírito Santo», festividade importante de Santiago, quando «lá havia o bodo».

No século XIX, com o reajustamento do mapa dos concelhos promovido pelo Liberalismo, primeiro Vale de Santiago foi integrado no concelho de Messejana, mas, com a extinção deste, passou para Odemira, onde se mantém.

A igreja é dedicada a Santa Catarina de Alexandria, que era «protetora das jovens casadoiras», como recordou o também historiador José António Falcão. Como este era um território periférico, que era preciso povoar, talvez venha daí a invocação àquela santa.

Falcão recordou que «a igreja primitiva foi muito afetada pelo terramoto de 1755», tendo depois sido reconstruída. Hoje ostenta um «frontão em chaveta desdobrada», como se fosse «uma flecha que aponta para o céu».

Mas Vale de Santiago está muito ligado a um alegado milagre feito por Nossa Senhora da Luz: a povoação esteve quase a ser tragada pelas águas, numa noite de muita chuva, mas surgiu uma luz e umas crianças disseram ter visto uma senhora a desviar as águas. Nas imediações, ainda existe uma fonte dedicada à Senhora da Luz.

«O orago era a Santa Catarina, as a devoção ia para a padroeira, que é a Senhora da Luz», salientou José António Falcão.

Dentro da Igreja, há uma bela imagem de Santa Catarina, bem como um retábulo em talha dourada, provavelmente feita por entalhadores das oficinas de Tavira e de Faro.

Nas ruas da aldeia, entre casas bem tratadas, algumas coroadas com chaminés onde se nota a influência do Algarve, que até não fica assim tão perto, uma casa, do dono da Herdade do Vale Longo, mostra o seu orgulho em ser proprietário agrícola. Entre os motivos decorativos da porta de entrada, figuram dois arados, naquilo que José António Falcão classificou como «um orgulho quase heráldico».

 

 

No passado fim de semana, as atividades começaram na sexta-feira, com a guitarra clássica da jovem odemirense Mariana Martins a apresentar-se no palco da Sociedade Recreativa São Teotoniense. A guitarra clássica e a viola campaniça estiveram lado a lado no palco, com intérpretes que dialogaram com Mariana, algo inédito. Mas também alguns jovens que, de manhã, tinham participado numa formação com ela acabaram por subir ao palco.

Mariana foi a primeira mulher a licenciar-se em Guitarra Portuguesa, formando-se na Escola Superior de Artes Aplicadas do Instituto Politécnico de Castelo Branco. Está agora a concluir o seu mestrado e já a dar aulas.

«A Mariana obrigou-nos a mudar os regulamentos da Câmara para apoiar os jovens que vão estudar fora», recordou o presidente Hélder Guerreiro. É que a jovem odemirense, como a Escola Secundária local não tinha Música, teve de ir estudar fora, com o apoio da autarquia.

Por tudo isto, o seu regresso, no âmbito da iniciativa «Onde a Vida Acontece», paralela ao Festival Terras sem Sombra, foi repleta de emoção. O Sul Informação não conseguiu estar presente, mas socorremo-nos aqui do trabalho da nossa parceira RIO – Rádio Internacional Odemira.

Como escreveu a RIO na sua página de Facebook, «foi um belo concerto da Mariana que cada vez mais se afirma como um valor seguro na música e que confessou que um dos maiores prazeres da sua ainda curta, mas cada vez mais segura carreira, é dar aulas, de forma a passar o amor e a sensibilidade pela música e pelo mágico instrumento que é a guitarra portuguesa, não só para que os seus alunos sejam guitarristas, mas, sobretudo, bons cidadãos».

Mariana, licenciada em guitarra clássica, também tocou viola campaniça, ela que é ainda «aprendiz» deste instrumento típico do Baixo Alentejo.

Oiça aqui alguns momentos desse concerto e também a entrevista com Mariana Martins:

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

 

 



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