Um cada vez mais raro macho de tartaruga já nada em liberdade no Atlântico [com vídeo]

Saindo do cais comercial do Porto de Faro, a lancha NRP Cassiopeia levou a bordo um passageiro especial

Às 10h16 desta quarta-feira, 20 de Julho, a tartaruga «Salina» saiu do tanque onde tinha sido transportada, a bordo do navio NRP Cassiopeia, até 11 milhas da costa, frente a Faro, nadou pouco mais de um metro e mergulhou.

O momento, sublinhado por palmas dos equipa multidisciplinar dos seus cuidadores zoológicos e dos marinheiros, marcou a devolução à natureza de mais uma tartaruga-comum (da espécie Caretta caretta), depois de treze longos meses a recuperar de diversas mazelas no Porto d’Abrigo – Centro de Reabilitação de Espécies Marinhas, do Zoomarine.

Acoplada à carapaça, a «Salina» – que até deve ser um «Salino», como se verá mais à frente – levava um equipamento (KiwiSat Argos) que, se tudo decorrer como previsto, permitirá acompanhar, ao longo dos próximos 425 dias, a sua progressão pelos mares deste planeta.

«Programámos a bateria, para, durante as primeiras semanas, termos dados com muita frequência. Depois, à medida que o animal vai progredindo, os dados já não são a cada três ou quatro minutos, passam a ser a cada 15 minutos, a cada hora e assim sucessivamente», explicou Élio Vicente, biólogo marinho e diretor de Conservação do Zoomarine, em entrevista, a bordo, ao Sul Informação.

Assim, acrescentou, «nas primeiras semanas teremos muita intensidade de dados, porque, se a tartaruga não se adaptar ao meio natural, teremos de tentar resgatá-la novamente».

A autonomia da bateria é de «à volta de 425 dias, mas deverá durar mais umas semanitas», espera o biólogo.

 

A tartaruga «Salina» com o equipamento acoplado na carapaça – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

O equipamento, esse, foi acoplado à carapaça com todos os cuidados, usando epoxi, fibra de vidro e uma espécie de plastina, tudo pintado com uma tinta que evita que as algas se agarrem. No fim, quando a bateria já não tiver carga e à medida que a caparaça for crescendo, o equipamento irá cair por si próprio.

A tartaruga tem ainda «duas anilhas de titânio que a identificam, para que, se for vista numa praia, ou aparecer arrojada, viva ou morta, uma pessoa que não tenha experiência imediatamente perceba que o animal já teve contacto com humanos. Mas leva também um microchip, como os nossos cães e gatos. Tudo isso irá ajudar um eventual investigador que venha a estar em contacto com este animal», acrescenta Élio Vicente.

Os dados que o equipamento vier a transmitir por satélite (e que podem ser acompanhados aqui) vão ser muito úteis para os cientistas. Esses dados permitirão, por exemplo, «saber para onde é que a tartaruga vai, a que velocidade vai, se está em águas mais quentes ou mais frias», explica. »Esta é uma forma de nós contribuirmos para a ciência», garante.

«As tartarugas marinhas, todas elas, estão ameaçadas de extinção e todo este conhecimento vai permitir-nos saber mais sobre as suas áreas de reprodução e de distribuição, fazer mais um apoio à preservação destas espécies que são fundamentais para o equilíbrio dos oceanos e que, devido à nossa incúria, irresponsabilidade e ganância, nas últimas décadas foram muito dizimadas. Infelizmente, chegámos a um ponto em que um indivíduo pode fazer a diferença, a médio e longo prazo, numa população».

Para mais se, como tudo indica, este indivíduo for um macho.  É que, como explicou Élio Vicente, «a temperatura de incubação dos ovos define se é macho ou fêmea». Ora, «com as alterações climáticas e a subida das temperaturas, cada vez nascem mais fêmeas, o que, do ponto de vista de uma população, no longo prazo, é uma desgraça».

 

Antonieta Nunes, com mais dois técnicos do Porto d’Abrigo – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

Antonieta Nunes, enfermeira veterinária e técnica do Centro de Reabilitação, acrescenta mais uma razão para esta devolução à natureza, com o transmissor, ser importante.

«Ao longo destas últimas semanas, percebemos que, quase de certeza, se trata de um macho», devido ao crescimento da cauda da (na realidade, do) «Salina».

«A maior parte dos animais com um transmissor são fêmeas que vão desovar às praias, só nestes casos conseguimos colocar um transmissor num macho, gerando dados sempre interessantes para a comunidade científica», disse Antonieta Nunes ao Sul Informação.

A enfermeira veterinária trabalha há 14 anos no Zoomarine, em cujo Centro de Reabilitação tem «de fazer um bocadinho de tudo, não só ser enfermeira veterinária para os animais, mas também fazer tudo o que é maneio dos tanques onde eles ficam: manutenção de piscinas, preparação de alimento, limpeza de habitats».

E qual foi a sensação quando, ao fim de meses de trabalho, devolveram mais um animal à natureza? «É a melhor de todas! Sensação de dever cumprido! O objetivo do Centro de Reabilitação é sempre o resgate, a reabilitação e a devolução ao meio selvagem, e, quando chegamos a esta fase, sabemos que valeu a pena!», exclama, entusiasmada, Antonieta Nunes.

 

Veja aqui o momento da libertação:

Mas não se pense que a história da recuperação desta tartaruga-comum foi fácil. Tudo começou em Junho de 2021, no Azinhal, perto das margens do Rio Guadiana, quando um pescador salvou uma tartaruga de morrer afogada. Élio Vicente explica que o animal terá subido o rio atrás das medusas (ou alforrecas), que por ali abundam e são, para a tartaruga, um petisco.

E porque havia o risco desta desenvolver uma pneumonia por aspiração (por ter ficado presa nas redes e poder ter, inadvertidamente, inalado água), esse pescador, Ricardo Gonçalves, não a devolveu logo à água, mas pediu à equipa de especialistas do Porto d’Abrigo do Zoomarine que a recolhesse, para observação, tratamento e posterior devolução ao meio selvagem.

No Centro de Reabilitação, o processo foi «diferente dos outros», recorda Antonieta Nunes. «A tartaruga tinha um anzol no estômago, mas, antes ainda de o tentarmos remover, ela tinha uma anemia muito grave, de tal forma que, se fosse num mamífero, se calhar não tinha resistido. Mas, por ser um réptil, eles são mais resistentes e ela aguentou-se. Tivemos de reverter esse quadro primeiro e só depois fomos tentar remover o anzol».

Um raio-X detetou o anzol cravado quase à entrada do estômago desta tartaruga. Várias tentativas realizadas pelo Dr. José Sampayo, um especialista internacional em endoscopia zoológica, revelaram-se infrutíferas para o remover, com segurança. No entanto, «como o evento já é antigo e o anzol está totalmente envolvido em tecido, assumiu-se que não representa perigo e que, com o tempo, se desintegrará», explicou Élio Vicente.

Durante os treze meses de reabilitação, a tartaruga até ganhou peso e cresceu: tinha chegado com com 63 centímetros e 38,7 quilos, mas regressou ao seu habitat maior (67 cm) e bem mais pesada (51,8 kg).

 

Élio Vicente com o comandante Rocha Pacheco – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

E, depois de ter mergulhado no mar mal foi libertada, a cerca de 11 milhas a sul de Faro, para onde irá agora a tartaruga?

Élio Vicente fala das experiências anteriores, para tentar estimar qual será a viagem da/do «Salina». «Este é o quinto animal que libertamos com esta ligação ao satélite. Os primeiros três foram para localizações muito diferentes, todas no Atlântico. Uma delas foi para a costa africana, para o Parque de Arguin, na costa da Mauritânia. A outra foi primeiro a Cabo Verde, mas depois foi até Cuba e deixou de dar sinal. A terceira, que só tinha uma barbatana dianteira, foi até à costa do Brasil e desapareceu. Poderá ter desaparecido pelo facto de bateria ter acabado, ter caído, ou porque o animal foi capturado. Não sabemos. Depois fizemos uma devolução com o Quinas, em 2019, que também levou um transmissor por satélite».

Todas as tartarugas libertadas na natureza, «quando saem daqui, vão sempre para Sul. Mas não sabemos para onde irá esta, exatamente. Não sabemos se este animal nasceu nas costas dos Estados Unidos, se nasceu no Mediterrâneo. Tirámos amostras biológicas e, do ponto de vista genético, vamos conseguir perceber a sua origem. Se for uma fêmea, volta à praia onde nasceu para depois fazer as suas posturas. Se for um macho, não se sabe para onde irá». Talvez os dados que o transmissor por satélite vai fornecer ajudem a esclarecer estes mistérios da vida das tartarugas.

A bordo da lancha da Marinha Portuguesa, acompanhando toda a operação com muito interesse, estava Rocha Pacheco, comandante da Zona Marítima do Sul. Este responsável recordou que «a Marinha colabora já há longos anos com o Zoomarine», nas operações de devolução de animais marinhos à natureza.

«A Marinha e a Autoridade Marítima, no âmbito das suas competências, colaboram com as várias entidades relacionadas com o mar e e com a sociedade civil, com o objetivo de preservação e conservação da natureza e da biodiversidade, no fundo para tornar o planeta mais sustentável», explicou em entrevista ao Sul Informação.

Mas a ação da Marinha no que diz respeito a questões ambientais vai muito mais além, acrescentou o comandante Rocha Pacheco. Passa por «ações de sensibilização à comunidade piscatória quanto aos cuidados que devem ter no âmbito da sua atividade, pela fiscalização e preservação do ambiente, prevenção da poluição por hidrocarbonetos, prevenção da atividade criminal ambiental, como a apanha do coral-vermelho ou do meixão».

Com tanta gente a ajudar, espera-se agora que a tartaruga «Salina» consiga adaptar-se bem neste seu regresso à vida selvagem. E que comece a fazer a sua viagem pelos oceanos, fornecendo dados importantes para a comunidade científica ao longo de, pelo menos, um ano e dois meses.

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

 

 



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