O fumo que nos une

Nada disto é novidade. Muito pelo contrário

Sobreiros queimados na zona da Azilheira – Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

Mais uma vez, desta feita a partir de S. Marcos da Serra, colunas de fumo traçam os céus do Algarve.

Para além de assinalarem o incêndio que lavrava, estes sinais de fumo comunicaram e lembraram ao Algarve o único aspecto em que é territorialmente coeso, de Barlavento a Sotavento: a vulnerabilidade e exposição a este risco.

Deste traço identitário regional, havíamos recebido, ainda há pouquíssimo tempo, acesa recordatória, materializada no incêndio que, deflagrando nas proximidades da Universidade do Algarve, percorreu uma franja litoral, afectando inclusivamente delicatessen paisagísticas como a Quinta do Lago ou Vale do Lobo.

Ficou assim demonstrado à saciedade que, da vernacular e abandonada à gourmet e badalada, toda a paisagem algarvia pode arder.

Justamente porque tem o risco como – triste – factor de coesão territorial.

Neste caso, ao contrário do Ludo, o enquadramento é mais “convencional”. As assimetrias económicas do Algarve terciário, “turistificado”, massivamente gentrificado e “litoralizado” arrastam atrás de si a demografia, criando paisagens despovoadas, cada vez mais abandonadas ao acaso.

Num contexto mediterrânico, de territórios profundamente trabalhados, em que “foi mais o suor vertido no desbravamento das encostas (…) que na construção das pirâmides”, como alerta Matvejevitch precisamente no seu Breviário Mediterrânico, o desaparecimento das actividades humanas, que desenhavam as paisagens e lhes conferiam textura, através de labores como a pastorícia, a agricultura e a exploração de usos múltiplos de matos e matas, o que fica é um manto simplificado.

Uma vez que o desenho das paisagens é determinante para o desenho das rotas do fogo na sua progressão, a consequência é igualmente simples: o fogo tem caminho aberto para avançar, sem grandes obstáculos ou necessidade de mudança de velocidade.

Mas nada disto é novidade. Muito pelo contrário.

Sendo certo que existem e subsistem certas iniciativas isoladas, públicas e privadas, que com mérito tentam animar e revitalizar certos sectores das serras algarvias, a verdade é que tardam medidas tão estruturais quanto os problemas a que devem procurar dar respostas – preferencialmente numa interpretação do conceito “estrutural” que divirja da leitura particular, e curiosamente muito liberal, que o Governo faz do mesmo: “laissez faire, laissez passer, le monde va de lui même” (deixa fazer, deixa passar, e o mundo vai por si mesmo), em linha com Vincent de Gournay.

Pensou-se que o Programa de Transformação da Paisagem (PTP), criado em 2020, pudesse ser um impulso determinante para alterar isso. Concretamente, através dos seus prolongamentos operacionais, os Programas de Reordenamento e Gestão da Paisagem (PRGP), bem como outras medidas preconizadas e, principalmente olhando aos princípios orientadores, definidos pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2020, de 24 de Junho.

De entre esses, destacam-se o “suporte e a remuneração da transformação da paisagem de longo prazo”, a “adoção de políticas públicas de natureza ambiental que alinhem os interesses da sociedade e das gerações futuras com os dos proprietários e gestores da terra, de modo a promover uma maior justiça interterritorial e intergeracional, garantido a devida valorização da propriedade rural e a promoção da gestão sustentável”, a “defesa do interesse público na assunção da gestão dos prédios rústicos não geridos e sem dono conhecido, designadamente no que se refere à execução das ações de defesa da floresta contra incêndios” e a “definição de modelos de intervenção expeditos e flexíveis, em particular no pós-fogo”.

No entanto, tarda em entrar em velocidade de cruzeiro, e pese embora a ambição do nome e do âmbito, uma análise mais cuidada mostra que PTP e PRGP consistem num conjunto de medidas para recuperação de áreas ardidas e para prevenção e minimização de riscos em áreas susceptíveis de arder, porque restringem o seu âmbito de aplicação a tais contextos.

Isso, por si só, não é mau. Mas já foi tentado. E obriga-nos a andar sempre a correr atrás do prejuízo.

Ao adoptar um entendimento redutor e sectorial do conceito de paisagem – afunilado ao critério da perigosidade e das áreas ardidas – o PTP, no seu conjunto, vai mesmo contra as orientações da Comissão Técnica Independente que analisou os grandes incêndios em Portugal Continental em 2017, que recomendavam uma nova visão para a paisagem nacional no seu todo, pois só de forma integrada e territorialmente coesa se podem gerar dinâmicas sociais, culturais e económicas capazes de equilibrar o modelo territorial, e revitalizar as áreas hoje em ciclo de desumanização e abandono.

Ainda assim, sendo o que há, é o que temos para trabalhar no imediato. Trabalhe-se então.

Dada a traumática magnitude de alguns dos mais recentes incêndios no Algarve, este até nos deixa na confrangedora circunstância de o poder considerar como não muito grande, cifrando-se, no momento de escrita deste artigo, com o fogo em resolução, a área queimada algures na proximidade dos 1500 hectares. Fica então como aviso moderado, o segundo a partir desta área num curto intervalo.

Mesmo assim, nesta relativa moderação, vitimou um interessante esforço de preservação da identidade e memória serrana, o percurso de interpretação paisagística e sensibilização cultural das Fontes Boião – Azilheira, severamente afectado.

Paralelamente a esta erosão identitária, progridem anedotários territoriais, numa região apenas para turista ver. Veja-se a Feira da Serra, de São Brás de Alportel, que se em tempos foi um certame intransigente na representação das gentes, artes, ofícios e saberes serranos, este ano até um bar de praia tem.

Ou seja, no Algarve até a Serra tem que se travestir de Litoral, para fazer sentido.

Pelo menos até arder. Aí então, nova e literalmente, esfumam-se as ilusões.

 

Autor: Gonçalo Gomes é arquiteto paisagista, presidente da Secção Regional do Algarve da Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP).
(e escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico)

 

 



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