Massificação turística e uberização da sociedade algarvia

Teremos de nos interrogar sobre o modo como o turista irá participar, não apenas no financiamento da despesa pública corrente, mas, também, no esforço coletivo de assegurar uma sustentabilidade forte no médio prazo

Volto ao tema da implicação mútua entre massificação turística, uberização de serviços, capitalismo low cost e risco de colisão social. A este propósito, a interrogação que mais me inquieta é a seguinte: se o turismo for uma atividade económica quase-monopolística na região algarvia teremos de nos interrogar, muito seriamente, sobre o modo como o turista irá participar, não apenas no financiamento da despesa pública corrente, mas, também, no esforço coletivo de assegurar uma sustentabilidade forte no médio prazo.

Não é difícil elencar os benefícios diretos de uma > Desde logo, um dinamismo muito evidente no mercado do emprego low cost, depois uma reabilitação urbana acelerada devido ao aumento da procura de alojamento, a seguir uma reprodução alargada do modelo dos pequenos negócios com retorno quase imediato, também, um crescimento rápido dos eventos e das atividades artísticas e culturais que criam um pequeno cluster nesta área de negócio, finalmente, e talvez mais importante, se a fase ascendente do ciclo turístico for duradoura, a economia regional pode tirar partido dos efeitos externos do turismo e, assim, diversificar a base económica regional em outras direções.

Mas os agentes económicos e as autoridades públicas devem estar, igualmente, muito atentos aos efeitos externos negativos de uma massificação turística muito intensiva:

– A especulação imobiliária e a subida do preço dos imóveis, arrendamentos, quartos de aluguer e serviços de construção,

– A gentrificação dos centros históricos congestionados e a suburbanização dos mais velhos e dos mais novos, por exemplo, os estudantes e os jovens casais,

– O desequilíbrio nos mercados de trabalho, a precariedade e o empobrecimento dos trabalhadores indiferenciados colocados por agências temporárias de emprego,

– A ocupação e o uso abusivo do espaço público e do património local com o aumento correlativo dos custos de limpeza, manutenção e reabilitação,

– A ocupação e utilização excessiva e abusiva de recursos naturais como a energia, o solo e a água e o aumento correlativo dos custos de provisão destes bens e serviços essenciais,

– O crescimento inevitável da pequena criminalidade associada à massificação turística e ao uso intensivo dos meios digitais,

– A volatilidade elevada dos mercados turísticos associada a episódios extremos derivados das alterações climáticas, crises pandémicas e de saúde pública e segurança coletiva.

Lembremos o fundo da questão. É preciso evitar a todo o custo o alastramento do círculo vicioso formado por capitalismo low cost, uberização dos serviços, risco de colisão social e populismo iliberal, uma tendência e mistura perigosas, prontas a explodir em qualquer momento e tanto mais quanto os protagonistas também já aí estão: agências temporárias de emprego, plataformas multinacionais, fundos predadores de investimento, associações de duvidosa representatividade, trabalhadores migrantes, partidos e movimentos populistas e nacionalistas.

Neste contexto e com este círculo vicioso, uma consequência parece inelutável a médio prazo: a transformação profunda da indústria do emprego e do regime salarial tal como nós o conhecemos até aqui e o crescimento da informalidade, da precariedade e da marginalidade “sugerido” pelo capitalismo low cost.

Como facilmente se comprova, estaremos, num futuro não muito longínquo, devido à quebra estrutural do emprego, condenados a uma sociedade de regimes laborais muito diversos, uns em part-time, outros em regime de freelance, outros ainda em regime contributivo e colaborativo, sob muitos formatos, condições e reputações, se quisermos, uma sociedade onde o individuo se produz a si próprio numa espécie de individualismo corporativo.

No final, não nos surpreenderia que este cidadão pluriativo acumulasse rendimentos de diversas proveniências, a saber: um emprego a tempo parcial num serviço público e/ou numa empresa privada, uma prestação de serviço em regime de freelance numa empresa a pedido, algumas horas de voluntariado num banco do tempo local em troca de um voucher e, finalmente, uma inscrição” numa startup colaborativa de uma parte dos seus recursos ociosos em troca de uma receita eventual obtida num mercado de ocasião.

A ideologia do capitalismo low cost e da uberização de serviços transporta-nos até um universo extrativista onde tudo é fluido, precário, transitório, passageiro, como tudo o que a UBER transporta.

É preciso avisar, em especial, os nativos digitais mais distraídos para esta sedução virtual e para a ilusão do auto empreendedorismo acessível que é passada através de uma presumida relação pós-salarial.

Ora, a revolução digital e o processo de uberização não podem conduzir ao aumento da desigualdade social e ao risco de colisão grave numa área-problema onde crescem a marginalidade e informalidade do emprego e do trabalho e onde cidadãos embarcados são passageiros em trânsito permanente em busca de melhores condições de vida numa pretensa sociedade democrática que é a nossa.

Nota Final

Volto agora à minha interrogação inicial. Vamos prosseguir na região algarvia a massificação de uma indústria quase-monopolista e muito extrativista, que não garante uma sustentabilidade forte dos recursos naturais mais críticos como a energia, a água e o solo, ou vamos proativamente induzir, a partir da atividade turística regional, uma malha de interligações e efeitos externos positivos sobre a base económica regional e, em particular, sobre o desenvolvimento de três outros clusters essenciais para o futuro da economia algarvia, a saber, o cluster do mar, o cluster agroalimentar e o cluster cultural e criativo?

Acresce que, no preciso momento em que as autarquias locais recebem as atribuições, competências e recursos da administração central em diversas áreas fundamentais para a qualidade de vida dos cidadãos, onde os turistas também se incluem, parece-me um imperativo de justiça relativa que a massificação de um setor de atividade dominante não se traduza em custos adicionais e desproporcionais para o orçamento municipal.

Dito de outro modo, é necessário discutir nos órgãos autárquicos como poderão ser internalizados os principais efeitos externos negativos induzidos pela atividade turística através de mecanismos e medidas de compensação obtidos junto do setor turístico e dos turistas.

Por último, também o setor empresarial e a responsabilidade corporativa, desde logo na atividade turística, terão de responder às novas exigências do paradigma tecno-digital, em especial, no que diz respeito às novas métricas de certificação ESG (responsabilidade ambiental, social e corporativa), onde se incluem as boas práticas de economia circular, os novos regimes de trabalho flexível e as áreas de boa governança corporativa.

E, no final, parece-me certo e seguro que a reputação e o bom nome de uma região não se farão por via do capitalismo low cost e a uberização dos serviços que, só por si, deixam passar uma imagem de marca que não dignifica nada nem ninguém e muito menos a nossa condição humana.

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 



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