A rainha D. Amélia visitou Lagos, Luz, Burgau e Albufeira há 120 anos

A história de uma rara visita real ao Algarve

As visitas reais ao Algarve foram raras e esparsas. Entre os périplos de D. Sebastião em 1573 e de D. Carlos em 1897, mediaram mais de 300 anos, sem que sangue real pisasse solo algarvio. Nem a inauguração do caminho de ferro, em 1889, constituiu motivo para uma deslocação das cabeças coroadas ao distrito, ao contrário do que vinha a suceder, em situações idênticas, noutros pontos do país.

Na verdade, a região era muito periférica, carecendo desde logo de acomodações para receber a comitiva real. Aquando a visita de D. Carlos e da rainha D. Amélia, em outubro de 1897, efetuada através da ferrovia, os monarcas pernoitaram amiúde no iate D. Amélia, por em terra não existir alojamento que permitisse receber o séquito real. Estávamos ainda muito longe de um Algarve cosmopolita e turístico dos nossos dias.

Se a viagem para a região era, por via terrestre, difícil e incómoda até à chegada do comboio, de caíque, com os ventos de feição, bastava um dia para atingir a costa algarvia. Todavia, apesar de Portugal constituir um país de marinheiros, foram poucos os monarcas que se aventuraram a viajar de barco, à exceção de D. Carlos.

 

Iate D. Amélia

 

Amante dos estudos oceanográficos e tendo visitado oficialmente o Algarve em 1897, o rei D. Carlos vai deslocar-se frequentemente, nos anos seguintes, ainda que de forma particular, aos mares algarvios, no iate D. Amélia. Uma dessas viagens ocorreu a 15 de Maio de 1902. A família real ausentou-se da capital durante três dias, tendo embarcado durante a manhã no cais da Galeota, juntamente com os condes da Figueira, Tarouca e d’Arnoso, marquês de Soveral e tenente Figueira, rumando para a costa sul.

A imprensa nacional, como os diários «O Século» ou o «Diário de Notícias», ainda que com menor cobertura, por se tratar de viagens privadas, não deixavam de as acompanhar, através de correspondentes locais. Também os periódicos regionais lhe dedicavam atenção, como o «Districto de Faro», até porque por vezes os monarcas deslocavam-se a terra. É pois assentes nos conteúdos destes jornais que procuraremos revisitar aqueles dias desusados e já esquecidos na história regional.

Ao fim do dia de 15 de Maio o iate fundeava na baía de Sagres. Na manhã seguinte a viagem prosseguiu para Lagos, tendo no trajeto o barco permanecido algum tempo junto das armações de atum da Torre Alta e Torre Altinha. O objetivo era assistir a um copejo, mas como não havia peixe o mesmo não se concretizou.

Ancorados na baía de Lagos, ao início da tarde, os monarcas receberam a bordo os cumprimentos das autoridades locais, militares, judiciais, administrativas, entre outras. Durante a receção D. Amélia mostrou interesse em conhecer as imediações da cidade, pois já visitara Lagos em 1897. Assim, às 16h30 a rainha, acompanhada da condessa de Figueiró, marquês de Soveral, condes de Arnoso, de Figueiró e de Tarouca, bem como o oficial da marinha Caldeira, desembarcou do iate real.

 

Cais de Lagos

 

Após uma breve deslocação a pé e paragem na «magnífica» igreja de Santo António, onde de acordo com «O Século» a monarca esteve «fazendo oração e admirando as boas obras de talha que ali existem», a comitiva dirigiu-se de trem para a Senhora da Luz, pela estrada de Espiche. Integraram o cortejo o administrador do concelho, o presidente da Câmara, Pedro Tello, Francisco Tello, Manuel António da Silva, Caetano Ribeiro Lopes, Joaquim Lobo de Miranda, Manuel Ferreira Corte Real, entre outros.

Na Luz, a rainha visitou a igreja e percorreu o adro, seguindo depois para Burgau, onde foi alvo de uma imponente manifestação popular. Afinal, «logo que constou que estava ali sua magestade a rainha, todos os seus habitantes vieram á rua, soltando muitos vivas á augusta soberana», lê-se naquele periódico.

D. Amélia distribuiu algumas esmolas pelos pobres, dirigindo-se novamente para Lagos, pela estrada da Luz. No momento do embarque, no cais da Praça da Constituição, estalejaram foguetes e repicaram os sinos, tendo o Batalhão de Infantaria 17 feito a guarda de honra e a elite lacobrigense saudado a comitiva. Nessa ocasião foram oferecidos à rainha dois ramos de rosas, pelas filhas do escrivão da Fazenda, Adelaide Moura e do vice-cônsul francês Ivonne Fabre.

O desembarque em Lagos fizera-se com «bastante dificuldade», tendo ocorrido na praia, por não existir cais apropriado na baixa mar. Situação que levou o «Diário de Notícias» (DN) a classificar de vergonhosa, por levar a rainha a «atravessar a immunda ribeira e arco de S. Gonçalo, que se acha tão limpo como aquella, chegando sua magestade a escorregar n’umas cabeças de peixe».

O correspondente daquele periódico reconhecia que os lacobrigenses haviam demonstrado «o respeito devido ao chefe de Estado e sua excelsa esposa», contudo salientava a falta do povo, e o pouco que surgiu saudara a real visita «com frieza», o que justificava como resultado do desagrado pelas promessas não cumpridas do governo (construção do cais), bem como pela desconsideração que a retirada da sede do regimento da cidade, ao fim de 96 anos, provocara.

 

Burgau

 

Um outro aspeto a considerar, acrescentamos nós, prendia-se com os ideais republicanos, que por aqueles anos já conheciam ali ampla difusão e que culminaram em 1908 com a eleição de uma câmara republicana.

Mas regressemos a 1902. A bordo, durante a tarde, o rei esteve na praia de Porto de Mós, «assistindo ao lançamento do chichorro, com que apanhou grande quantidade de peixe de differentes qualidades».

À noite, segundo o DN, foram iluminados na cidade os edifícios dos paços do concelho, quartel do Batalhão 17 e hospital regimental, bem como lançados foguetes, enquanto na baía alguns barcos embandeiraram em arco.

Na manhã seguinte, 17 Maio, pelas 10h00, o iate levantou ferro rumo a Albufeira, a fim de D. Carlos presenciar a pesca de atum nas armações próximas. Copejo a que todos assistiram na armação da Galé, por cuja companhia mandaram os soberanos distribuir, segundo o «Districto de Faro», 50$000 réis.

Quando o iate fundeou na baía de Albufeira, estalejaram em terra girândolas de foguetes. Cerca das 16h00 a rainha desembarcou, com a sua comitiva, comparecendo à receção, de acordo com «O Século», a «câmara, auctoridades, muitos cavalheiros distinctos e povo».

D. Amélia passeou pelo campo em carruagem. Apesar de não se esperar a visita, «foi-lhe feita uma ovação delirante. Muitas colchas ás janellas, e atiraram-lhe flores e bouquets», lê-se naquele diário. A rainha orou na igreja matriz, tenho recolhido ao iate à noite, «bem impressionada». Quer em Albufeira quer em Lagos houve a atuação de bandas filarmónicas.

 

Albufeira

 

O rei, «por causa dos seus estudos oceanographicos», não desembarcou, recebendo a bordo os cumprimentos da Câmara, demais autoridades locais e particulares.

Ao contrário de Lagos era a primeira vez que Albufeira recebia a rainha D. Amélia e, talvez por isso, a soberana foi, nas palavras de «O Districto de Faro», «enthusiasticamente acclamada» em todo o percurso. Aqui não haveriam promessas por cumprir. Recorde-se que em 1897 a família real recebeu as boas vindas da Câmara e dos albufeirenses na gare ferroviária, não se deslocando à sede de concelho. Quanto aos ideais republicanos, conheciam parca expansão.

O iate D. Amélia rumou depois a Setúbal, onde no domingo os reis assistiram à missa.

A brevíssima viagem não seria a única naquele já longínquo ano de 1902. Em Agosto o iate real e suas majestades visitavam novamente os mares algarvios. Das diversas campanhas oceanográficas efetuadas por aqueles anos resultou a obra, composta por dois volumes, «Pescas Marítimas: I. – Pesca do Atum no Algarve em 1898» e «Ichthyologia: II. Esqualos obtidos nas costas de Portugal durante as campanhas de 1896-1903», da autoria do rei D. Carlos, publicados em 1899 e 1904, respetivamente.

Mas, por agora, Maio de 1902, os lacobrigenses e albufeirenses congratulavam-se pela visita inesperada da rainha D. Amélia e dela guardariam memória por toda a sua existência.

 

 

 



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