Construir os territórios-rede da nossa interioridade

Trata-se de preparar a inteligência coletiva territorial da 2ª ruralidade em direção a um objetivo muito mais modesto

Volto a um tema muito sensível para mim, a nossa interioridade e, em especial, os territórios-rede da nossa interioridade. Para trás, ficaram as promessas da 1ª ruralidade, mais o industrialismo e o urbanismo da 1ª modernidade.

Trata-se, agora, de preparar a inteligência coletiva territorial da 2ª ruralidade em direção a um objetivo muito mais modesto, uma malha fina, capilar e delicada de pequenos empreendimentos muito bem articulados entre si em espaço rural.

Apresento a seguir uma série de exemplos que são uma espécie de arquitetura de interiores de uma região. É fundamental dar-lhes um nome e uma identificação, suscitar para eles a nossa atenção e investigação, aumentar a sua atratividade e visibilidade no espaço público, enfim, relevar os seus sinais territoriais mais distintivos e a partir deles construir novos territórios simbólicos. Sem eles, e sem a malha e a rede que eles constituem, não haverá uma genuína valorização do interior.

1) A construção de um sistema alimentar local (SAL)

Um município ou um agrupamento de municípios, um clube de produtores e um clube de consumidores, uma associação de desenvolvimento local e uma escola superior agrária, por exemplo, propõem-se desenhar um sistema alimentar local (SAL), a partir da agricultura social e periurbana e, por via de circuitos curtos, organizar o comércio local de produtos alimentares de proximidade; ao mesmo tempo, a parceria aproveita para requalificar o sistema de espaços e corredores verdes, utilizando, por exemplo, as hortas sociais, as linhas de água e os bosquetes para articular as áreas urbanas, as áreas rurais e as áreas naturais;

2) A construção de uma denominação de origem protegida (DOP)

Um parque natural, o clube de produtores do parque e a associação ambientalista local, o conjunto das aldeias que integram o parque, a associação de desenvolvimento local da região e a escola politécnica ou universidade mais próxima, propõem-se modernizar o sistema produtivo local do parque, criando, para o efeito, uma agroecologia específica, uma denominação de origem protegida (DOP) ou indicação geográfica de proveniência (IGP) e uma nova estratégia de visitação do parque;

3) A construção ou requalificação de um mercado ou segmento de nicho

Um empreendimento turístico, uma área de paisagem protegida, uma câmara municipal, uma associação de desenvolvimento local e uma escola superior politécnica, propõem-se requalificar vários empreendimentos turísticos (aldeamentos da 1ª geração), as zonas húmidas e uma praia adjacente e criar um nicho de mercado, por exemplo, um novo espaço público de qualidade para o turismo acessível, terapêutico e recreativo com base numa aglomeração de atividades terapêuticas, criativas e culturais criadas para o efeito;

4) A construção de um complexo agroturístico com campo de férias e aventura

Um grupo de aldeias ribeirinhas, na margem de um lago ou albufeira, de uma barragem ou bacia hidrográfica, os operadores turísticos aí sedeados, as associações e/ou clubes de produtores agroflorestais, as administrações de recursos hídricos, uma escola superior agrária, propõem-se desenhar e lançar uma estratégia criativa e integrada de agroturismo e turismo rural que inclui a participação dos visitantes nas práticas agrorurais tradicionais e a colaboração de voluntários desses campos de férias;

5) A construção de uma rede de turismo de aldeias e um touring de natureza

Um grupo de aldeias com vocação especializada num determinado sector ou produto, as aldeias vinhateiras do Alto Douro, por exemplo, associa-se aos empreendimentos turísticos, as associações ou clubes de produtores, uma escola superior e as associações culturais mais representativas, tendo em vista desenhar uma estratégia conjunta de visitação e valorização do património material e imaterial dessa sub-região;

6) A construção de uma marca coletiva para o relançamento de uma gama de produtos

Um grupo de cooperativas agrícolas ou associações de agricultores, uma empresa de distribuição alimentar ou rede de supermercados, a associação de municípios da mesma área, uma escola superior agrária ou universidade, associam-se tendo em vista desenhar uma estratégia conjunta de modernização agrária e comercial para uma sub-região que foi objeto de investimentos públicos significativos e que precisa urgentemente de ser relançada (o regadio da Cova da Beira, por exemplo);

7) A construção de um sistema ou mosaico agroflorestal (SAF)

Uma ou mais Zonas de Intervenção Florestal (ZIF), as associações ou clubes de produtores florestais, as reservas cinegéticas, as áreas de paisagem protegida e as zonas de proteção especial, as empresas agroflorestais, uma escola superior agrária, associam-se para constituir um sistema agroflorestal ou mosaico agro-silvo-pastoril tendo em vista criar uma estratégia de intervenção integrada que vai desde a prevenção e recuperação de áreas ardidas à construção dos sistemas agro-silvo-pastoris com o seu cabaz completo de produtos da floresta;

8) Lançamento de um centro de ecologia funcional e arquitetura paisagística

Um centro de investigação na área da biodiversidade, ecologia funcional e reabilitação de ecossistemas, um parque ou reserva natural, uma associação agroflorestal, empresas de turismo em espaço rural, empresas na área do termalismo, propõem-se criar um programa de investigação-ação tendo em vista a preservação da biodiversidade e dos endemismos locais, a melhoria da oferta de serviços de ecossistema relevantes e a valorização comercial destes ativos biodiversos por via do lançamento de serviços turísticos, culturais e científicos;

9) Um programa de desenvolvimento de aldeias serranas e de montanha

Um agrupamento de associações de desenvolvimento local, uma universidade ou escola politécnica, uma escola profissional agrícola, um parque ou reserva natural e um conjunto de aldeias serranas, os operadores de turismo de natureza e de aldeia, propõem-se desenhar e lançar um programa de desenvolvimento comunitário de aldeias serranas e de montanha e um cabaz de produtos correspondente;

10) A construção de um parque biológico e ambiental

Um grupo empresarial da área do termalismo e águas minerais, uma área de paisagem protegida, uma associação ambientalista ou de desenvolvimento local, uma escola superior politécnica, a cooperativa ou associação local de produtores, as aldeias e vilas da área de influência do projeto, propõem-se criar uma espécie de santuário, amenidade ou ecossistema exemplar que seja um local de visitação de boas práticas agroecológicas mas, sobretudo, de aprendizagem das técnicas de engenharia biofísica, ecologia da paisagem e reabilitação de habitats, economia da conservação, assim como da arquitetura funcional associada à bioconstrução e à bioclimatização;

11) Um Parque Agrícola Intermunicipal com objetivos de inclusão social

No campo da ação social, um projeto intermunicipal, associativo ou comunitário e com base no voluntariado que junte, por exemplo, os Sindicatos, as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), uma escola superior agrária, tendo em vista a reinserção social em sentido amplo, a formação profissional e a realização de contratos de institutional food para abastecimento de escolas, prisões, hospitais, quartéis, lares;

12) Uma Quinta Pedagógica, Recreativa e Terapêutica

No campo da ação pedagógica, recreativa e terapêutica, um projeto intermunicipal, associativo e comunitário, dirigido aos grupos mais vulneráveis da população com necessidades especiais, que junte as IPSS, os serviços hospitalares, a universidade, as ordens profissionais e os centros de investigação, tendo em vista a provisão de serviços médicos, pedagógicos, recreativos e terapêuticos, mas, também, ambientais que são essenciais para o bem-estar e a qualidade de vida dos grupos mais sensíveis de população.

Notas Finais

Em todos os casos referidos, o propósito é sempre o mesmo, a valorização de recursos expectantes, a formação de uma cadeia de valor, uma ação coletiva inovadora, um ator-rede inteligente e uma comunidade de autogoverno eficaz.

Além disso, é preciso criar espaço público favorável em redor dos futuros territórios-rede e sua interligação. Um grupo de amigos/comissão promotora, a imprensa regional, podem criar esse espaço público e colaborar na procura dos seus sinais mais distintivos, bem como na formação de um ator-rede que seja capaz de ouvir, interpretar, promover e realizar as aspirações de um território que é desejado.

Em tempo de transição digital, acrescento um último tópico. Trata-se da ligação entre comunidades online e comunidades reais tal como elas resultam dos exemplos aqui referidos e em particular a articulação entre a métrica das redes digitais e a lógica dos territórios administrativos convencionais, sobretudo os territórios mais remotos e desfavorecidos do interior do país.

Serviços públicos fixos e permanentes e devidamente municipalizados ou serviços públicos polivalentes, itinerantes e multimunicipais? O que é que a sociedade digital, as comunidades online e a governação algorítmica podem fazer por estes territórios remotos e esquecidos e pelas comunidades reais do país oculto? Abandonam, reocupam, retalham, privatizam? Teremos de voltar mais vezes ao assunto.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

 



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