«E se fosse a senhora?»

Os refugiados precisam, sobretudo, de verdade, de quem entenda ou faça o esforço honesto de tentar compreender mesmo o que é deixar tudo para trás

Àquela hora, os utentes do espaço são, por algum tempo, os mesmos. Maioritariamente idosos, de muitas proveniências, formam grupos, às vezes heterogéneos (inclusivamente com pessoas que vêm da Inglaterra, Holanda, Índia, Bangladesh, Rússia, Moldávia, etc.), outras nem tanto.

Enquanto fazem os seus tratamentos, conversam animadamente. O tema habitual é comida, mas por estes dias, o grupo que agora se formou tem mudado de assunto, distanciando-se, no verdadeiro e literal sentido da palavra, pois, volta e meia, lá vem a Ucrânia. Há uma senhora que se destaca sempre, porque expressa, sonora e continuamente, opinião e com o seu maravilhoso e carregado sotaque algarvio.

– «Ai, menina, já na dou viste tanta netícia de guerra! Coitadas daquélas pessoas!», dizia, condoidamente, sendo seguida por outros na preocupação. E com a conversa a fluir, alguém refere que agora vamos receber muitos refugiados.

– «Pôs, sabe, isse é que ê nã concorde! Vêm todes por aí fora e nós é que vames sefrer, porque vames perder os nosses empregues! A nha neta, coitadinha, nã consegue trabalhe e essa gente vem ficar com o que é nosse! Se forames nós, ninguém se impertava, nem vinhem defendernes!»

Alto e bom som. Pensei, enquanto ouvia, que se seguiria um silêncio, que alguém responderia e argumentaria, que haveria contraditório. Mas, para meu espanto, todos os participantes da conversa concordaram, vociferaram e, de fervorosos solidários e socio-caritativos portugueses, irmãos do povo ucraniano, passaram a medrosos desconfiados das consequências da vinda de quem foge da guerra.

Fiquei muda, no canto onde ninguém me via, onde habitualmente estou, sem participar dessas conversas, fazendo o meu tratamento e, dentro de mim, cresceu uma onda de sentimentos, de memórias, de tal forma que as lágrimas me correram rosto abaixo, confesso.

Veio a lembrança da noite em que, fugindo da guerra, cheguei a Lisboa, recebi um pão, uma maçã, uma água e um casaco da Cruz Vermelha no aeroporto, porque fazia frio e eu não tinha roupa apropriada, nem sequer sabia se teria uma refeição para além da que vinha naquele saquinho; na verdade, não tinha nada; veio a lembrança do jantar dessa mesma noite, tomado no Colégio Militar, entre tantos outros como eu, uma refeição de recurso, parca, porque eramos muitos… e tristes; veio a lembrança de uma pessoa de família, em cuja casa ficámos por poucos dias, que tinha um saco com pão preso à porta da cozinha, mas dizia já não haver, quando eu pedia mais uma torrada ao pequeno-almoço; veio a lembrança da senhora, familiar indireta, que fechava os bifes na mesinha de cabeceira e dava a chave à minha mãe para ir buscar um, de modo a que o cozinhasse para ela, só para ela…

A capacidade de nos colocarmos na pele do outro tem muito que se lhe diga. A solidariedade não é um amontoado de palavras piedosas, que se repetem sem nunca se aplicarem. E quando nos atacam as dúvidas sobre o impacto desses gestos, a tendência é para retroceder, voltarmos a um lugar que é tão humano, tão humano, mas que é tão triste, tão triste: o egoísmo. Nesse lugar, a vista turva-se e a razão não funciona, porque não temos capacidade de enxergar para além do próprio umbigo. Aí, nesse lugar, a solidariedade morre.

Há tantos empregos em Portugal que não são desejados, nem ocupados por nacionais. Veja-se o que acontece nas estufas do Alentejo. Olhem para a restauração algarvia, onde falta tanta mão de obra. Ainda há dias, a conhecida Chefe algarvia Noélia dava nota disso: oferece mil euros a quem trabalhe com ela, mas não consegue preencher as vagas. Vejam quem ocupa postos na construção civil.

Os refugiados precisam de ajuda, mas não precisam de roupa suja (como aquela que é entregue, agora, em muitos centros de recolha e sei do que falo, porque conheço quem a deitou, envergonhado, para o lixo); precisam de casa, mas não de um abrigo para uns dias, pois a época alta está para chegar e depois os apartamentos têm de se alugar aos turistas e pôr a render.

Precisam, sobretudo, de verdade, de quem entenda ou faça o esforço honesto de tentar compreender mesmo o que é deixar tudo para trás; de quem saiba o que é sair de casa sob o fogo das balas para comprar comida; precisam de falar, de fazer silêncio, de chorar, de sorrir, de viver… Como nós. Porque, acreditem, podemos já ter sido nós um dia, poderemos ser nós amanhã, num tempo que não conseguimos ter como certo e garantido.

Naqueles idos de 1975, o discurso foi o mesmo e, todavia, os refugiados que chegavam eram portugueses, tão portugueses como os que aqui viviam. E sabem que mais? Geraram empregos, criaram riqueza, ajudaram outros, porque não se esconderam atrás do medo e da tristeza de tudo perderem. Recomeçaram e guardaram para si as dores, chorando-as, somente, como eu, nestas horas em que voltamos atrás no tempo e a vida nos prova que, efetivamente, há coisas que permanecem, mesmo que latentes. E estou certa de que será assim com os Ucranianos.

Naquela tarde, só me faltou fazer uma pergunta, cuja possibilidade de resposta me deixa muito curiosa: -«E se fosse a senhora?»

Slava Ukraini! Viva a paz!

Nota final (que também podia ser prévia): Deixo aqui bem expresso o meu respeito pelos algarvios e sua pronúncia, que amo e reproduzo com verdadeiro orgulho de uma “quase” filha da terra. E deixo, igualmente, expresso o meu respeito e admiração pela grande maioria do povo português, a quem reconheço grandes qualidades, entre as quais a capacidade de ser, de verdade, solidário.

 

 



Comentários

pub