As grandes transições – climática, energética, ecológica, agroalimentar, digital, laboral, demográfica, migratória, sociocultural – vão marcar profundamente as próximas décadas até 2050, o ano da neutralidade carbónica.
Já aí estão o roteiro da neutralidade carbónica 2050 (RNC), o plano nacional da energia e clima 2030 (PNEC) e agora, também, o regime jurídico do sistema elétrico nacional (DL nº15/2022 de 14 de janeiro).
Pela importância de que se revestem na reorganização da economia, pelo volume de investimentos que mobilizam na próxima década, pelo lugar central que irão ocupar nas políticas públicas do Portugal 2030, pelo impacto enorme que terão nos territórios, estamos perante uma transformação profunda da economia e da sociedade portuguesas.
O assunto é sério e não pode ser tratado com ligeireza, embora todos saibamos que num horizonte tão largo de tempo tudo pode acontecer, mesmo os maiores imponderáveis.
E o imponderável aconteceu. No dia 24 de fevereiro estalou a guerra entre a Ucrânia e a Rússia, seguiram-se as sanções aplicadas pelo Ocidente e, agora, a estagflação da economia europeia espreita a todo o momento. Estamos, aparentemente, num impasse. A guerra gerou uma escassez de petróleo e gás e uma subida brusca dos preços dos combustíveis, o que põe em causa o programa de descarbonização europeu tal como tinha sido concebido no âmbito da transição energética.
É, pois, uma boa altura para algumas reflexões a propósito.
Como sabemos, a principal preocupação está focada no aquecimento global e, portanto, na descarbonização da economia com metas para 2030 e 2050, o ano da suposta neutralidade carbónica. Esta descarbonização será acelerada pela transição digital e acontecerá em todos os setores de atividade: no sistema de produção elétrica, no parque de edifícios, no sistema de transporte, nos processos industriais, na economia dos resíduos, nas práticas agrícolas sustentáveis, no reforço da capacidade de sequestro da floresta nacional, na descarbonização da administração pública e das cidades.
O RNC 2050 e o PNEC 2030 cobrem uma extensa gama de setores que atravessam transversalmente toda a economia portuguesa. Da prevenção à mitigação e da adaptação à transformação, eis todo um programa de ação para a próxima década e um complexo de políticas públicas de difícil administração.
Sabemos também que a descarbonização será maioritariamente acessível através da nova economia da era digital: na cidade inteligente, na rede de energia inteligente, na economia circular, na economia da biodiversidade e dos serviços ambientais, na economia verde e alimentação, na economia azul, na economia da habitação e bioconstrução, na economia da saúde e dos cuidados primários e na economia da proteção civil e da biossegurança, entre os mais relevantes. As redes inteligentes tomarão conta destes setores e a desmaterialização de processos e procedimentos permitirá poupar muita energia.
Sabemos ainda que a descarbonização da economia reclama uma nova estrutura de custos e benefícios de contexto que é necessário antecipar para o momento zero do RNC e do PNEC. Se a nova estrutura de custos e benefícios de contexto não for acompanhada de um sistema de incentivos apropriado e de uma nova estrutura de despesa fiscal, ninguém poderá garantir o sucesso deste grande empreendimento.
Com efeito, a descarbonização da economia implica uma nova geração de investimentos públicos no território, sobretudo, a sua cobertura digital adequada para processar um grande volume de dados. A arritmia da inovação e do investimento em tantos setores que deviam estar conectados para produzir bons resultados ocasionará, inevitavelmente, um efeito de dissipação do próprio processo de descarbonização que é preciso levar em linha de conta desde o primeiro momento.
Por isso mesmo, é preciso cuidar da transição justa, dos efeitos de aglomeração territorial, de novas assimetrias territoriais, da concentração empresarial e dos efeitos de exclusão social em consequência da neutralidade carbónica e dos planos de energia e clima.
Se em cada região NUTS II não cuidarmos do equilíbrio destes vários efeitos externos e não tivermos um nível de ataque para os programar e reparar a tempo e horas, teremos, seguramente, muitos problemas graves pela frente.
Sabemos, finalmente, que a descarbonização da economia, na sua aceção mais ampla, é um complexo de medidas de política que se desenrola a vários níveis. Do lado da oferta ela contempla a produção e o armazenamento de energia de fontes renováveis, a distribuição grossista e a comercialização a retalho, a produção e distribuição descentralizada das comunidades locais de energia, o controlo e regulação da repartição do rendimento gerado no interior das novas cadeias de valor, as boas práticas de benchmarking em matéria de sustentabilidade e governança, uma política de transição justa de coesão territorial e uma adequada política de incentivos em matéria de economia circular.
Do lado da procura, falamos de eficiência e poupança de recursos e consumos em todos os setores, de uma melhor organização das cidades, de uma correta política de transição justa no que diz respeito ao modo como usamos os recursos do território – solos, água, ventos, exposição solar, cobertura florestal, riquezas minerais.
Além disso, o equilíbrio entre emissões e captura de carbono depende, como sabemos, de uma boa qualidade dos solos e uma boa cobertura florestal.
Aqui chegados, perguntamos, terá Portugal, apesar dos meios financeiros disponibilizados pelo PRR e o PT2030, capacidade empresarial, tecnológica e capital humano bastantes, para aproveitar as condições naturais do seu território e capitalizá-las sob a forma de energia solar, eólica, hídrica e marítima?
Será o hidrogénio a resposta para os desafios do armazenamento e será o país capaz de integrar as cadeias de valor das baterias na União Europeia? E as interligações do mercado ibérico ao resto da União Europeia tendo em vista uma maior estabilização de preços da energia no quadro de um mercado único da energia, estarão elas concluídas nesta década?
Estas são as grandes interrogações que os efeitos da guerra não deixam ver claramente. Desde logo, nestas grandes transições há um risco elevado de dissipação e entropia que tem a ver com a descontinuação ou redução dos investimentos programados e com a desconexão das medidas de política previstas.
Quem fica a perder são, geralmente, os micro e pequenos projetos que se inscrevem numa linha de coerência de médio e longo prazo e que neste enquadramento não encontram os benefícios de contexto e as economias de rede mais apropriados.
A guerra é um enorme problema e uma grande oportunidade, sobretudo em termos de transição energética e descarbonização. Para a Península Ibérica é a grande oportunidade de ligar o mercado ibérico de eletricidade ao mercado único europeu da energia.
Para Portugal, um balanço preliminar afigura-se positivo: uma maior complementaridade entre recursos renováveis do território (sol, água, vento, biomassa, mar), um maior equilíbrio entre emissões e sequestro de carbono, custos de produção renovável mais competitivos e atração de indústrias eletro intensivas, uma maior participação em cadeias de valor com interligação às redes europeias, uma transição justa com redução dos custos de contexto, maior número de comunidades locais com produção descentralizada de energia, maior eficiência e redução de consumos energéticos, uma valorização da estratégia nacional de hidrogénio, uma nova estrutura de benefícios financeiros para a transição energética.
Resta saber, porém, o que a guerra ainda nos reserva daqui até lá.
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