Linces Sismo e Senegal são os mais novos habitantes de Alcoutim [com fotogaleria]

Depois de várias soltas no Alentejo, dois exemplares de lince-ibérico foram pela primeira vez libertados no Algarve

O Sismo, a olhar calmamente para os mirones

Quando as duas crianças do Agrupamento de Escolas de Alcoutim levantaram a porta da gaiola, o Sismo, um lince-ibérico macho, saiu da forma tranquila, não correu, foi andando calmamente e olhando para as pessoas que o seguiam (quase) em silêncio, quase todas a registar o momento com máquinas fotográficas ou telemóveis.

O Sismo até parou algumas vezes, mirando os mirones – entre eles os jornalistas. O percurso de menos de 100 metros entre a gaiola e o grupo de árvores e pedras onde depois se abrigou levou-lhe mais de três minutos a fazer, a passo.

Depois, foi a vez da fêmea Senegal, mais assustadiça. Mal a porta da gaiola se abriu, saiu a correr e foi ter com o macho Sismo, no meio das árvores. «Foi à sua vida o mais rápido que conseguiu», explicaria depois aos jornalistas o presidente do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF).

Uma atitude diferente do Sismo, sobre o qual Nuno Banza disse que os próprios veterinários o tinham caracterizado como «um lince muito mais seguro, muito mais autoconfiante, muito menos medroso».

Sismo e Senegal, linces-ibéricos de cerca de 1 ano de idade, nascidos e criados no Centro de Reprodução de El Acebuche, no Parque Nacional de Doñana, na Andaluzia (Espanha), tornaram-se esta quinta-feira, dia 24 de Fevereiro, os primeiros exemplares da sua espécie, criados em cativeiro, a ser libertados na natureza no Algarve.

Foi num terreno pedregoso, entre estevas, algumas azinheiras e campo lavrado para pasto de vacas, que a solta ocorreu, algures entre Giões e Farelos, no concelho de Alcoutim.

A assistir, estava mais de uma centena de pessoas, desde João Paulo Catarino, secretário de Estado da Conservação da Natureza, a Nuno Banza, presidente do ICNF, Castelão Rodrigues, diretor regional do ICNF, João Alves, também alto dirigente do ICNF e responsável pelo projeto de reintrodução do lince, Osvaldo Gonçalves, presidente da Câmara de Alcoutim, João Fernandes, presidente da Região de Turismo do Algarve, Mário Dias, diretor regional Adjunto de Agricultura e Pescas do Algarve, Elsa Cordeiro, vice-presidente da CCDR Algarve, Lurdes Serpa Carvalho, diretora de Serviços de Desenvolvimento Regional da CCDR, e ainda cerca de uma dezena de crianças do Agrupamento de Escolas de Alcoutim, autarcas, membros de diversas entidades e associações ligadas ao ambiente e conservação da natureza, técnicos do ICNF, da Câmara de Alcoutim e de outros serviços, professores, guardas de natureza, e os proprietários dos terrenos onde a solta ocorreu.

 

O Sismo, prestes a ser libertado

Esta reintrodução do lince-ibérico na natureza, que pela primeira vez ocorre no Algarve, «é para nós um sinal muito importante, sobretudo porque mostra o acerto da estratégia que fomos seguindo, de introduzir os animais numa área onde existam condições, de suporte de habitat», para que a espécie aí possa sobreviver, explicou Nuno Banza, presidente do ICNF.

«Não nos podemos esquecer que estamos a reintroduzir uma espécie que já antes ocupou este território. Só que, fruto da alteração das circunstâncias e do habitat, ela perdeu a capacidade de sobreviver aqui», acrescentou.

Ora, «essa capacidade de sobreviver está muito suportada na fonte de alimentação», que é sobretudo o coelho bravo. «E, portanto, ter a possibilidade de alargar esta área de ocorrência do lince é também um indicador de que o habitat tem agora maior qualidade e mais capacidade de suportar a existência da espécie. Isto gera uma maior responsabilidade e também uma nova forma de olhar para o território numa perspetiva em que, se nós conseguirmos encontrar as soluções certas, se conseguirmos fazer as parcerias locais com os cidadãos, com os agricultores, com os caçadores, com as autarquias locais e com os habitantes dos locais onde ocorre o lince, podemos criar condições para que, aquilo que, no passado, fez com que o lince desaparecesse, a caça furtiva ou a destruição do seu habitat, desta vez não aconteça», acrescentou aquele responsável.

O objetivo do projeto de reintrodução do lince-ibérico, que junta diversas entidades e organizações de Portugal e Espanha, é que se chegue a uma «estratégia de reequilíbrio do ecossistema», de tal forma que este deixe de precisar destas reintroduções, gerando uma «comunidade de animais que seja autossustentável» e «viável do ponto de vista genético».

O Sismo e a Senegal foram criados em cativeiro no Centro de Reprodução de El Acebuche, na vizinha Andaluzia, e soltos agora algures no concelho de Alcoutim. Isto, apesar de até haver no Algarve, na serra de Silves, um Centro de Reprodução do Lince-Ibérico, que tem feito um trabalho de muito sucesso. Então porquê libertar em Portugal animais espanhóis?

Nuno Banza explicou que isso tem a ver com a necessidade de «tentar fazer uma troca genética o mais abrangente possível», garantindo que «a diversidade genética não volte a criar problemas de consanguinidade, com todas as doenças associadas».

Aliás, salientou,«a decisão da libertação não é uma decisão regional, nós em Portugal não decidimos libertar aqui ou os espanhóis decidem libertar lá. Existe uma coisa que se chama Comité de Cria em Cativeiro, um conselho científico», que, «em função daquilo que é a maior vantagem para todos, decide onde libertá-los». Para mais, «os linces não conhecem as fronteiras».

 

A fêmea Senegal

Sete anos depois do início do processo de reintrodução, são agora referenciados um pouco mais de 200 exemplares em liberdade distribuídos por um vasto território que se estende entre os concelhos de Serpa, no Alentejo, e de Tavira, no Algarve.

Segundo o ICNF, um dos aspetos mais relevantes de 2021 foi a consolidação da população em território algarvio, que já contava com cerca de 20 exemplares e que agora soma mais dois: Sismo e Senegal. Durante o ano passado, das 70 crias de lince nascidas em liberdade em Portugal, nove nasceram no Algarve, onde há «ainda um amplo território que poderá vir a ser ocupado pela espécie».

O secretário de Estado João Paulo Catarino, questionado sobre se é a natureza a responsável pelo sucesso destas reintroduções, respondeu: «É a natureza…com muita técnica», graças à cooperação transfronteiriça entre Portugal e Espanha, que deu lugar à «união na investigação». Tudo isso, acrescentou o governante, fez com que «uma espécie que estava praticamente extinta» esteja agora «salva».

João Portugal Ramos, proprietário de um dos territórios, uma zona de caça, onde inicialmente foi reintroduzido o lince no Alentejo, também presente nesta primeira solta em terras algarvias, fez questão de dizer que «sem a caça, essa atividade milenar, nada disto era possível».

Tendo em conta que 80% da dieta do lince é o coelho bravo, há quem tema que a libertação dos felinos possa afetar ainda mais as populações de coelhos, já de si escassas, sobretudo devido a doenças.

Mas não é bem assim, pelo menos segundo o presidente do ICNF, que explicou que «aquilo que procuramos é ter uma comunidade de linces saudável e sustentável, que possa ir sendo alargada e que desempenhe a sua verdadeira função: o lince caça os coelhos mais frágeis, os mais doentes, acaba por ter uma função de regulação na cadeia alimentar, de regulação ecológica do sistema. E, portanto, não esperamos que disto resulte nenhum outro aspeto que não o reequilíbrio, fazendo de novo justiça ao habitat e revertendo uma perturbação que foi introduzida sobretudo pelo homem».

 

…a Senegal arrancou a fugir…

João Portugal Ramos, enquanto gestor de zonas de caça, admite que a reintrodução do lince pode ser «uma despesa», mas garante: «estamos conscientes que faz parte, faz parte da nossa atividade, temos que criar mais caça e nós sentimo-nos confortáveis porque estamos a fazer alguma coisa. Não é só caçar, estamos a promover uma zona, estamos a promover a biodiversidade, estamos a promover um animal que estava em vias de extinção e isso dá-nos especial gozo».

Tânia Pereira, gestora de duas zonas de caça num total de 5600 hectares «divididos entre o Algarve e o Alentejo, com o rio Vascão pelo meio», é a dona do terreno onde o Sismo e a Senegal foram libertados esta quinta-feira. Mas garante que estes são apenas os «linces oficiais», porque a espécie já por lá anda há algum tempo.

«Não fomos nós que escolhemos os linces, foram os linces que nos escolheram a nós, já cá estavam no terreno antes desta solta. Estes, para nós, são os linces oficiais, os não oficiais já existem no terreno», acrescentou.

Osvaldo Gonçalves, presidente da Câmara de Alcoutim, estava contente com a escolha do seu concelho para esta primeira libertação, no Algarve, de animais criados em cativeiro: «é um contributo que estamos a dar para a biodiversidade, para o equilíbrio da natureza, fundamentais para a valorização do próprio território».

Tendo em conta o contributo que os proprietários, os gestores das zonas de caça, os agricultores e produtores florestais e a restante população estão a dar para a reintrodução do lince-ibérico, o autarca alcoutenejo defendeu, em declarações ao Sul Informação, que o Ministério do Ambiente ou o ICNF devem criar «contrapartidas» e «medidas de apoio», para o «repovoamento das espécies que são, no fundo, a base da alimentação do lince, no caso, o coelho bravo».

Todas estas são considerações sérias sobre o presente e o futuro de uma espécie que se poderá tornar emblemática dos territórios do interior alentejano e algarvio, servindo até de chamariz para turistas, sejam eles caçadores ou amantes da natureza.

Mas, na tarde enevoada desta quinta-feira, a libertação do casal de linces encheu de alegria o grupo de crianças de Alcoutim que assistiu à operação.

A ajudar a levantar as portinholas das caixas, tapadas por panos pretos para manter a tranquilidade dos animais, estiveram quatro crianças – primeiro o Simão e uma menina cujo nome a repórter não conseguiu saber, depois o Lourenço e a Mariana.

Após a libertação, um dos jovens alunos, que se tinha até mantido a uma distância razoável das caixas, queixava-se de comichão e dizia: «se calhar foram os linces que me passaram piolhos…» E logo um coleguinha lhe respondeu: «tu é que se calhar és alérgico aos linces». Seguiu-se gargalhada geral dos adultos.

O pequeno Lourenço, de seis anos, não quis falar muito com os jornalistas, mas, instado a comentar o que vira, disse: «eu vi os linces…mas eles são muito rápidos!»

 

Fotos: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

 

O lince pode ser símbolo da resiliência do interior

No futuro, quando as reintroduções de linces na natureza já não forem necessárias, porque se criaram populações estáveis daquele que chegou a ser o felino mais ameaçado do mundo, os Centros de Reprodução deverão ser mais Centros de Recuperação para a espécie. Esta é a perspetiva do presidente do ICNF.

Mas ainda faltam muitos anos de trabalho para se chegar a esse ponto ideal. Nuno Banza realça, porém, as boas notícias em relação ao projeto: «neste momento, o número de crias que tem nascido no meio natural é muito significativo face àquilo que eram as expectativas iniciais. Nós registamos à volta de 70 crias nascidas em 2021. E é preciso notar que estes são os nascimentos que nós contámos, portanto, pode acontecer que haja outras fêmeas que se tenham reproduzido e que tenham tido crias e que nós não tenhamos apanhado nem na fotoarmadilhagem, nem na telemetria, nem nos trabalhos de monitorização».

Aquele responsável adiantou que está a ser feita «recolha de informação genética quer em Portugal, quer em Espanha, para perceber a evolução do perfil genético e da forma como eles se cruzam e como conseguem diversificar esse património genético».

Em 2002, havia pouco mais de uma centena de linces em liberdade em toda a Península Ibérica. E a espécie, à beira da extinção, era considerada o felino mais ameaçado do Mundo. Atualmente, há mais de 1100, dos quais 209 em Portugal. São números que espelham bem o sucesso do projeto transfronteiriço.

Segundos os estudos conjuntos desenvolvidos entre Portugal e Espanha, a situação do lince-ibérico deverá tornar-se estabilizada, «previsivelmente entre 2035 e 2040», revela o ICNF. É nessa altura que se estima que possam existir «700 a 750 fêmeas territoriais reprodutoras» na Península Ibérica, «reduzindo significativamente o risco de extinção da espécie».

«A reintrodução de uma espécie é um processo de médio e longo prazo, em que o reforço genético das populações deve ser garantido até que sejam autossustentáveis», salienta o ICNF num documento de síntese.

E conclui: «a perspetiva futura é de não só conseguir uma total recuperação do papel das espécies nos ecossistemas mediterrâncios, mas também de valorizar os territórios do interior onde as populações de lince se reproduzem, constituindo um símbolo das atividades que aí se realizam e um elemento diferenciador e de dinâmica para quem lá vive».

 

 



Comentários

pub