Um Museu em Vila do Bispo para contar 400 milhões de anos de histórias

Projeto de museologia e museografia foi apresentado

Um museu de território, de comunidade, feito para todos e com todos. Este é, em resumo, o ambicioso projeto para o Museu de Vila do Bispo, cujo projeto, de arquitetura, mas, sobretudo, de museologia e museografia, foi apresentado há dias, no âmbito do feriado municipal do concelho.

A obra em si está em curso, embora alguns percalços tenham atrasado os trabalhos. Como já se sabia, o museu vai ter como casa os antigos armazéns da Federação Nacional dos Produtores de Trigo, mas o projeto de arquitetura prevê a ampliação do edifício com um outro corpo, em betão avermelhado, remetendo para a cor do grês que marca a Ponta do Telheiro, monumento geológico do concelho. Aí vai funcionar um pequeno auditório com 50 lugares, a pensar nas escolas e no serviços educativos. Mas haverá ainda espaço para áreas de exposição e reservas.

Como em todos os museus, a memória tem, aqui, um papel principal. A começar pela memória do próprio do edifício, que remete para as campanhas do trigo lançadas pelo Estado Novo, quando o concelho de Vila do Bispo era conhecido como «o celeiro do Algarve». O edifício da FNPT (depois EPAC) era precisamente o local onde se guardava todo o trigo produzido…daí que o segundo nome desta futuro museu seja, precisamente, «Celeiro da História».

O projeto de criação deste museu significa um investimento, por parte da Câmara de Vila do Bispo, que não é propriamente das mais abonadas do Algarve, de mais de 2 milhões de euros, grande parte consumidos pela obra de construção.

Aliás, como explicou a presidente da Câmara Rute Silva, na sessão pública de apresentação do projeto, a que o Sul Informação assistiu, a primeira empreitada (2017) foi adjudicada por 1,406 milhões de euros. Mas, depois de muitos atrasos e percalços, a empresa inicial acabou por abandonar a obra. Foi então preciso lançar novo concurso e os trabalhos, já de novo em curso, foram adjudicados por 1,9 milhões de euros.

A «boa notícia», adiantou a autarca, é que «em Dezembro passado, a Câmara teve a confirmação de que haverá uma comparticipação de 857 mil euros, do CRESC Algarve 2020».

Mas Rute Silva adiantou que o Município está a «fazer uma reprogramação do projeto, para tentar obter maior comparticipação na obra». «O meu trabalho agora é encontrar mais financiamento para o nosso museu!», garantiu a presidente da Câmara.

Ricardo Soares, arqueólogo municipal e responsável pelo projeto do museu, acrescentaria: «estamos atentos a todos os financiamentos que surgirem, para podermos ir buscar mais dinheiro, cirurgicamente».

E quando é que o Museu estará pronto? Rute Silva anunciou que, se não voltar a haver problemas com o empreiteiro, «no Verão, vai terminar a obra física». Depois, «ainda faltam todas as montagens», mas a autarca mostrou-se confiante de que a nova estrutura possa ter a sua «inauguração em 2023».

 

 

Com o projeto global do museu a ser trabalhado desde há cinco anos, é natural que as pessoas estejam já ansiosas pela abertura das suas portas. Isso explica, decerto, o facto de, numa fria noite de sexta-feira, ter havido cerca de quatro dezenas de vilabispenses, alguns deles crianças, a assistir, com interesse, à apresentação do projeto, que começou pouco passava das 21h00 e terminou já depois da meia noite.

Ricardo Soares explicou que há muito trabalho que está a ser feito, menos visível, para além da construção em si. «O museu não é o edifício, é o conteúdo, são as memórias, este é verdadeiramente um projeto inclusivo e participativo», explicou. É que «todos os dias, há alguém que chega com uma peça, que conta uma história, que entrega uma fotografia, que traz uma memória. E o edifício será a caixa para estas memórias coletivas».

Um dos mais recentes exemplos dessas peças que todos os dias chegam nem sequer cabe no museu. Trata-se de uma enorme debulhadora Tramagal, oferecida pelos donos de uma casa agrícola local. Apesar de já ter muitos, muitos anos, «esta máquina está em bom estado de conservação», garantiu o arqueólogo. E é uma peça que tem tudo a ver com o tal «Celeiro da História».

Paulo Monteiro, da empresa especializada GloryBox, responsável pelo projeto museológico e museográfico do Museu de Vila do Bispo e que foi também responsável pelo premiado Museu Metalúrgica Duarte Ferreira, no Tramagal (Abrantes), que funciona na fábriga onde a debulhadora foi produzida há mais de meio século, garantiu que nem essa casa-mãe dispõe de um exemplar de tão boa qualidade.

Ricardo Soares insistiu: «este nosso museu não é para os turistas, é para as nossas crianças, para a nossa comunidade, é o museu de todos nós».

«Um museu sem a comunidade é um museu sem alma. O que me choca é ir a um museu onde o projeto é feito para artistas ou para outros museólogos, porque o importante é fazer um museu de pessoas, para as pessoas e com as pessoas», corroborou Paulo Monteiro.

Mas e que história irá contar este museu? «Uma história de 400 milhões de anos», explicou o arqueólogo. Porque, no «Celeiro da História», haverá espaço para os dinossauros, cujas pegadas podem ser vistas na praia da Salema, bem como para outros geomonumentos, como a Ponta do Telheiro, visitada por geólogos de todo o mundo.

Continuará depois por tempos também remotos, mas ainda assim mais recentes, como os 34 mil anos da jazida paleolítica de Vale de Boi, provavelmente habitada por homens de Neandertal, caçadores-recoletores que, naquele vale que desemboca no mar, a julgar pelos restos de ossos encontrados pelos arqueólogos chefiados por Nuno Bicho, da Universidade do Algarve, ali caçavam auroques e leões. Esses ossos, aliás, serão peças do novo museu.

Mas continuará até há 9500 anos (Mesolítico), com o concheiro do Castelejo, 6500 anos (Neolítico), com as peças cerâmicas e os machados mirenses da Cabranosa (Sagres).

 

Menir do Padrão

 

Em destaque, estará o megalitismo de Vila do Bispo, até porque em todo o concelho há cerca de 280 menires registados, o que, salientou Ricardo Soares, faz com que, neste município, exista a «maior concentração de menires da Península Ibérica e os mais antigos do Ocidente europeu».

O museu falará igualmente da necrópole e dos menires da Pedra Escorregadia (4700 anos), a única sepultura da pré-história no concelho, escavada nos anos 90 pelo arqueólogo Mário Varela Gomes, ou das estelas de guerreiros, com cerca de 3900 anos (Idade do Bronze), encontradas na necrópole do Padrão (Figueira).

Aproximando-se já da era atual, há os importantes vestígios da Boca do Rio, onde se situava «o 2º maior complexo de produção de conservas de peixe de todo o Império Romano», logo a seguir a Tróia. Em 2018, em trabalhos conduzidos pelo arqueólogo João Pedro Bernardes, da Universidade do Algarve, foi mesmo descoberto o porto que servia este complexo industrial.

«Os mosaicos romanos da Boca do Rio (retirados em 2009), estão restaurados e prontos a entrar no museu, assim como outros objetos que saíram das escavações nesse local», garantiu Ricardo Soares.

Chegando à Idade Média, quando este era um «território partilhado por árabes, cristãos, moçárabes e judeus», o destaque vai, por exemplo, para as estelas funerárias que estão na Igreja Matriz de Vila do Bispo, no «antigo “museu” do padre Clemente», um assunto que a equipa está «a tratar com a Diocese».

Continuando a marcha desta história até aos tempos mais recentes, o Museu contará também o episódio da Batalha de Lagos, no âmbito da Guerra dos 7 Anos, a 18 de Agosto de 1759, quando o Ócean, navio-almirante da marinha francesa, atacado por navios ingleses, acabou por naufragar na praia da Salema, tendo vários dos seus canhões ficado submersos frente à Boca do Rio. Nos anos 70, numa das primeiras intervenções de arqueologia subaquática em Portugal, então chefiada por Francisco Alves, esses canhões foram retirados do fundo do mar e levados para Lisboa. Agora, «50 anos depois, vão voltar de Lisboa para Vila do Bispo».

Também no mar, será recordado o fatídico dia 24 de Abril de 1917, em plena I Guerra Mundial, quando o submarino U-35 da Marinha Imperial Alemã afundou quatro navios estrangeiros, frente a Sagres.

Mas até a Fábrica de Bolachas «Marreiros & Irmãos», de que nem a maioria dos vilabispenses se recorda, estará no museu.

Assim como os percebes, tão apreciados hoje, já que «a vocação para o marisqueio deste nosso terrritório vem desde os tempos mais remotos». Os concheiros milenares que o digam.

Ou a riqueza ambiental, numa zona que é reserva biogenética da Europa e tem espécies de plantas e de animais que só aqui existem.

Mostrando uma foto de um animal algo estranho, Ricardo Soares perguntou: «Quem é que me sabe dizer que bicharoco é este na foto?» «Triops vicentinus», respondem de imediato duas crianças na plateia, familiarizadas com esta espécie de camarão-girino que é endémica, ou seja, única desta região mais sudoeste de Portugal continental.

 

Triops vicentinus – Foto: Elisabete Rodrigues | Sul Informação

Paulo Monteiro, responsável pelo projeto museológico e museográfico do Museu de Vila do Bispo e por inúmeros outros por esse país fora, garantiu: «com esta abrangência, de 400 milhões de anos, não há nenhum museu em Portugal».

Só que tanta abrangência coloca também desafios importantes, quando se tem de pensar um projeto destes. «Onde é que vamos meter isto tudo?», interrogou Paulo Monteiro.

É que, explicou, «os museus, hoje, já não são espaços onde colocamos peças em vitrines, hoje os museus são espaços dinâmicos».

Das centenas de peças que este terá, só cerca de «45% é que serão expostas, o resto ficará nas reservas». E isso abre portas à imaginação, a uma exposição que, sendo permanente, seja dinâmica, com a possibilidade de ir rodando as peças que estão a ser mostradas ao público.

Uma possibilidade que até a forma como as vitrinas são concebidas – com um sistema automatizado de abertura, que evita as ventosas para retirar os pesados vidros – irá ajudar.

Apesar de ser dotado de muita tecnologia, nomeadamente «aplicações interativas que terão mais informação sobre cada um dos conteúdos», Paulo Monteiro não quer que isso seja o aspeto dominante no museu. E, sobretudo quer «tecnologias maduras, que funcionem e não deem problemas». Ou seja, como resumiu Ricardo Soares, «não queremos ficar reféns das tecnologias», de tal modo que, se alguma delas falhar, todo o museu fique sem sentido.

«Será um espaço muito interativo que permita uma relação direta com os objetos, alguns dos quais estarão dentro de vitrines, mas outros estarão fora», explicou o responsável pela empresa GloryBox.

Um bom exemplo disso mesmo são os periscópios que o museu terá, que não servirão para observar, sem ser visto, a superfície do mar, mas para ver filmes e jogos sobre a epopeia do submarino alemão U-35.

«A tecnologia não é divertimento, o mais importante da tecnologia são os conteúdos que lá metemos», sublinhou Paulo Monteiro.

Uma das senhoras que estavam a assistir, e que não arredou pé ao longo das três horas desta apresentação, confessou-se «emocionada» com tudo o que lhe estava a ser revelado. E essas palavras também sensibilizaram os principais responsáveis pelo projeto.

«Este museu não termina aqui, é ponto de chegada ou de partida para conhecer o território», disse, a fechar, Paulo Monteiro.

 

Fotos: Câmara Municipal de Vila do Bispo

 

Nota: O título e duas citações foram corrigidos às 14h09, alterando o número de milhões de anos.

 

 



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