Ser no mundo o que a alma é no corpo

Aos que são verdadeiramente católicos, cristãos de outras confissões religiosas, budistas, muçulmanos, o que é pedido é mesmo que superem as leis com a própria vida

Tenho um pequeno grupo de amigos – digo pequeno, somos três –, que se reúne regularmente para jantar. São ocasiões bem especiais, para mim e para os outros dois membros, pois partilhamos mais do que a refeição. A conversa é, tantas vezes, mais saborosa que as iguarias que comemos e serve-nos, verdadeiramente – pelo menos a mim, de certeza! – de alimento para os dias que se seguem, para os galgar e vencer, nos bons e nos maus momentos.

No último destes jantares, comentávamos vários temas. A semana tinha sido fértil em notícias relacionadas com os valores católicos, com a sua vivência (ou não).

Os três somos católicos ativos e não o escondemos. Por isso, a conversa decorria, com as nossas perguntas e dúvidas e com as análises mais ou menos bem-humoradas ou mais sérias que íamos produzindo. Tantos assuntos nos tocaram, tantos deles mexendo diretamente naquilo em que acreditamos…. Tanta gente se preocupa com o que pode ser menos neutro e mais promotor da igualdade, mais revelador de um certo sentido de justiça….

Demo-nos conta que estávamos num momento peculiar da reflexão sobre os temas de conversa: a devolução à Assembleia da República, pelo Presidente Marcelo, da Lei da Eutanásia; o documento da União Europeia, preparado pela Comissária para a Igualdade, Helena Dalli, no qual se previa que a comunicação desta instituição abandonasse o uso de várias expressões, entre elas “Natal”, que deveria ser substituída por “festividades”; os escândalos relacionados com sexualidade dentro da Igreja, mais precisamente a recente demissão do arcebispo de Paris, monsenhor Michel Aupetit.

Sobre o documento da União Europeia, dizia o Papa Francisco tratar-se de «uma moda de laicidade liquefata, água destilada», «algo que não funcionou durante a história» e que a «União Europeia deve tomar em mãos os ideais dos Pais fundadores, que eram ideais de unidade, de grandeza, e ter cuidado para não dar lugar a colonizações ideológicas».

Sobre a demissão do arcebispo de Paris, também dizia Francisco que seria impossível alguém governar depois de existirem dúvidas sobre a sua conduta, mesmo que nada estivesse provado e esclarecido e que, por isso, tinha aceitado a renúncia, «não sobre o altar da verdade, mas sobre o altar da hipocrisia».

Sobre a eutanásia, o Papa havia já dito, que ela e «o suicídio assistido são uma derrota para todos. A resposta a que somos chamados é nunca abandonar aqueles que sofrem, não desistir, mas cuidar e amar para restaurar a esperança».

Nas palavras de Francisco que aqui reproduzo, ficam expressos eloquentemente, opino, os valores em que os três acreditamos e defendemos. Não tínhamos dúvidas. E, de repente, Diogneto entra na conversa.

Uns dias antes, outro órgão de comunicação social algarvio (Folha do Domingo) publicava um artigo de um destes amigos, que, abordando as relações entre os católicos, recordava uma carta dirigida a este homem de origem romana, que terá vivido no século II. Do autor e do destinatário pouco se sabe, mas as palavras da epístola ficaram como uma das mais eloquentes descrições do modo de viver dos primeiros cristãos.

Tanta tinta gasta em infindáveis artigos publicados por esse mundo fora sobre estas matérias; tanto tempo de antena em rádios e televisões; tanto comentário pago ou não, mais ou menos fundamentado, mais ou menos inteligente; tantas palavras mal ditas e mal recebidas… E a verdade está escrita há cerca de 20 séculos!

Dizia a carta a Diogneto: «Obedecem [os cristãos] às leis estabelecidas e superam as leis com as próprias vidas».

A preocupação do presente é digna e justa. Devemos dizer quem somos e aquilo em que acreditamos, até porque, muitas vezes, sem vozes claras e credíveis, como a do Papa Francisco, não se olha para os problemas que ensombram o quotidiano com uma perspetiva verdadeiramente assertiva e que nos permita evitar que se oculte a natureza das instituições, das civilizações, da História.

Sobretudo, sem essa manifestação do pensamento não se promoveria a troca livre, democrática do mesmo, como está previsto na maioria das constituições desta nossa Europa e de tantos outros países. E é obrigação dos católicos e outros crentes, trabalharem pela construção do bem comum, logo, de leis mais justas e concordantes com os valores que defendem e comportamentos absolutamente respeitosos.

Todavia, para lá da vozearia, para lá das trocas comezinhas dos vulgarmente apelidados “galhardetes”, está a conduta, a forma de ser e de agir, que sendo individual, se revela socialmente e pode ter uma força maior que todas as leis e decretos. E esse, recordando uma célebre campanha eleitoral de um político que começamos a esquecer, é o “cerne” da questão.

Aos que são verdadeiramente católicos, cristãos de outras confissões religiosas, budistas, muçulmanos, o que é pedido é mesmo que superem as leis com a própria vida. Pondo de forma mais clara e simples: pôr em prática aquilo em que se acredita, sem dúvidas ou margens para equívocos.

E isso não significa ser radical! Significa ser leal, ou seja, entender aquilo que é fundamental, para o testemunhar, pondo-o em prática, coerentemente, no dia-a-dia, em todos os sinais que vamos dando exteriormente sobre a nossa mais íntima maneira de ver o mundo e de nele estar.

No fundo, voltando à carta a Diogneto, revelando que, como crentes, seremos no mundo «o que a alma é no corpo».

 

Autora: Sandra Côrtes Moreira é licenciada em Comunicação Social, pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa, Mestre em Comunicação Educacional, pelas Faculdades de Letras e de Ciências Humanas e Sociais das Un. de Lisboa e Algarve e Mestre em La Educación en la Sociedad Multicultural pela Universidad de Huelva. É doutoranda em Educomunicación y Alfabetización Mediática pela Universidad de Huelva.
Técnica Superior de Línguas e Comunicação na Câmara Municipal de Faro, é também Assessora do Gabinete de Informação da Diocese do Algarve, membro da equipa da Pastoral do Turismo e da ONPT.

 
 

 
 



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