“Bordeirense”, a cooperativa com 100 anos «em que Belmiro de Azevedo se inspirou»

Esta é uma das cooperativas mais antigas de Portugal

Leonardo Abreu – Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

Em 1921, Bordeira era uma espécie de ilha, um território isolado no concelho de Faro, sem água, luz ou telefone. Mas tinha gente, pessoas muito ligadas àquela terra e que, movidas «pela necessidade», se uniram para criar algo novo: uma cooperativa de consumo. E assim nasceu “A Bordeirense”, que está a comemorar 100 anos de luta, de resistência e de histórias, como aquela, no ano de 1964, em que nem uma rusga do regime a impediu de continuar a funcionar. 

Leonardo Abreu conhece bem a Cooperativa, que é uma das mais antigas do país. Presidente há oito anos, é neto de um dos 10 fundadores d’ “A Bordeirense”, o que lhe confere uma ligação quase umbilical a esta instituição – e que não esconde.

«Devo-lhe dizer que isto foi uma criação notável», recorda ao Sul Informação, durante o almoço de comemoração dos 100 anos da cooperativa.

17 de Novembro de 1921 foi a data chave: o dia em que “A Bordeirense” nasceu formalmente, pela mão de 10 homens que já tinham a ideia pensada «de certeza há algum tempo».

«O movimento, acreditamos que era anterior ao dia em que foi feita a escritura. Isso e o facto de haver mais gente envolvida do que apenas os 10 homens que deram a cara, de modo formal», relata Leonardo Abreu que também já foi presidente da Junta de Freguesia de Santa Bárbara de Nexe.

 

Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

 

Todos eram movidos por uma razão-maior que os levou a criar esta cooperativa: «a necessidade».

«Nós éramos uma terra isolada. Faltava-nos muita coisa. Daí, a criação de uma cooperativa de consumo, que tinha de tudo, alimentos, calçado e vestuário. Eu, às vezes, por graça, até digo que o Belmiro de Azevedo se inspirou nos estatutos da Cooperativa para criar os seus hipermercados», conta Leonardo Abreu, entre risos.

Eram tempos ainda sem automóveis: os cerca de 14 quilómetros que separam Bordeira de Faro eram percorridos a custo.

Por isso, durante os primeiros anos da cooperativa, havia um fornecedor – um homem que ia a Faro, comprava o que era preciso nos armazéns e entregava a comida, calçado ou roupa à “Bordeirense”, que vendia os bens aos sócios.

Naquela pequena terra, reinava um outro valor que, na opinião de Leonardo Abreu, também foi preponderante.

«Havia – e continua a haver – um espírito de partilha muito grande, em Bordeira. Falo dos valores da unidade, da cooperação, da entreajuda para poder enfrentar melhor as dificuldades da vida. Além disso, esta nunca foi uma terra em que houvesse, a meu ver, uma grande décalage de classes», diz.

A isto junta-se algo inegável: «uma inclinação para uma determinada ideologia cooperativa que só tinha nascido há algumas décadas na Europa».

«A criação desta cooperativa deu-se apenas onze anos após a Implantação da República e estes homens eram republicanos, trabalhadores sindicalizados e também muito ligados ao associativismo», recorda Leonardo Abreu.

Ao longo dos 100 anos de existência, houve um período especialmente difícil. Os tempos do Estado Novo, avessos ao cooperativismo, revelaram-se desafiantes.

Além das detenções de bordeirenses, às mãos da PIDE, recordadas por José Manuel, que já foi presidente da cooperativa, houve, em 1964, um episódio particular.

 

Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

 

Nesse ano, uma inspeção – «que é como quem diz, uma rusga» – do Ministério das Corporações levou à apreensão dos documentos d’ “A Bordeirense”.

«Levaram tudo e só depois do 25 de Abril é que conseguimos recuperá-los, mas nem isso, durante esses anos, nos impediu de continuar!», conta, por sua vez, Leonardo, sem esconder o orgulho.

Atualmente, os tempos já são outros. O espaço da Cooperativa, que continua a funcionar, está agora arrendado a duas pessoas que exploram quer a parte da taberna, quer a que é ligada à mercearia.

O casal Bruno Rosa e Rita Silva gosta mais de ser tratado como «atuais inquilinos». São eles que estão à frente da “exploração” dessas duas valências da Cooperativa.

Enquanto vão atendendo quem lá chega, Bruno Rosa fala dos «valores» que continuam a nortear todos os bordeirenses.

 

Rita Silva e Bruno Rosa – Foto: Pedro Lemos | Sul Informação

 

«Isto é uma coisa que já não se vê. Aqui, a palavra das pessoas é tão importante hoje, como era há 100 anos. Por exemplo, se alguém me diz que vem pagar mais tarde, vem mesmo», diz, de sorriso no rosto.

É um sítio familiar, onde toda a gente se conhece, e que ostenta quadros com os nomes de todos os fundadores para que a memória não se esqueça.

José Nunes está à mesa com mais três amigos e, entre uma cerveja e um café, conta a história do dia em que deu dinheiro do seu próprio bolso para que a Cooperativa não acabasse.

«Esta é uma instituição muito importante para Bordeira», atira.

A semente da solidariedade, lançada à terra há 100 anos pelos fundadores da Cooperativa, é, para Leonardo Abreu, um dos segredos da longevidade da “Bordeirense”, cujas comemorações do centenário também já incluíram uma tertúlia sobre o passo da instituição.

«Esta é uma terra viva porque tem valores e características muito próprias. O valor da partilha mantém-se em Bordeira, apesar das várias vicissitudes ao longos dos anos», conclui.

 

 



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