Fazer o mapeamento, até 2026, das necessidades reais dos doentes com doença crónica e avançada, no concelho de Aljezur, é o objetivo do projeto «Palliare+», cujos mentores principais são o enfermeiro Rui Correia, bem como a enfermeira Graça Pedro, que é a responsável pela Unidade de Cuidados na Comunidade (UCC) Ribat.
Sob o lema «Saber identificar para cuidar melhor», o projeto surgiu no âmbito do mestrado de especialidade em enfermagem da Escola Superior de Saúde de Beja, que Rui Correia está a fazer.
«Neste momento, estou aqui em estágio na UCC Ribat, do Centro de Saúde de Aljezur, e o objetivo, enquanto mestrando, foi desenvolver um projeto de intervenção para uma necessidade que encontrasse». E o enfermeiro identificou que uma dessas «necessidades» era dar a conhecer o que são os Cuidados Paliativos, não só entre a população em geral, como entre os próprios profissionais de saúde. E depois saber quantas pessoas precisam desses cuidados.
Logo de início, foi identificado que era preciso «atuar numa das barreiras que têm atrasado o acesso dos cidadãos aos Cuidados Paliativos, que é precisamente a falta de formação dos profissionais de saúde. A própria OMS reconhece que uma das barreiras importantes é a falta de formação. E ela própria recomenda que todos os profissionais de saúde deveriam ter uma formação básica. Então nós atuámos aí, em parceria com as equipas de Cuidados Paliativos da unidade de Portimão do centro hospitalar do Algarve, e também do ACES Barlavento, a equipa comunitária».
E foi assim que, nos meses de Junho e Julho, decorreu uma ação de formação de 21 horas, aberta a todos os profissionais de saúde que se deslocaram a Aljezur para isso.
Depois, numa iniciativa mais virada para a população em geral, o Espaço+, em Aljezur, está a acolher, até ao fim do mês de Agosto, uma exposição de fotografia, que, em imagens de grande qualidade e, sobretudo, grande sensibilidade, captadas pelo olho artístico da enfermeira Ana Sousa, dos Cuidados Paliativos do hospital de Portimão, mostra o dia a dia dos doentes e dos profissionais que, a vários níveis, deles cuidam.
Rui Correia salienta que os Cuidados Paliativos «são um direito que todos nós temos. Mas as pessoas, muitas vezes, nem sabem disso».

«O objetivo da exposição é desmistificar o conceito dos Cuidados Paliativos. Infelizmente, as pessoas ainda associam muito os cuidados paliativos à morte, aos cuidados em fim de vida… E a culpa também é nossa, dos profissionais de saúde, que só quando pensamos que já não existe nada a fazer é que ponderamos usar os cuidados paliativos».
Mas o enfermeiro entende que «isso são conceitos errados, que têm de ser combatidos». O objetivo desta exposição é «sensibilizar a população, consciencializar para a importância destes cuidados em fim de vida e não só. E para as pessoas estarem mais bem informadas e reclamarem, porque, ao fim ao cabo, isto acaba por ser um direito a que todos nós devemos ter acesso. E está consagrado na Constituição Portuguesa. Só que muitos de nós desconhecemos este acesso à saúde como um direito em caso de necessidade».
Rui Correia explica que os Cuidados Paliativos «englobam os cuidados em fim de vida, mas não se ficam por isso. Ou seja, são destinados a todas as pessoas que tenham uma doença crónica em estado avançado. Podem ser anos. E o nosso trabalho é precisamente que estas pessoas tenham acesso aos cuidados paliativos numa fase mais precoce e não só nas últimas semanas de vida. Porque aí é difícil ir à essência dos cuidados paliativos que é promover a qualidade de vida, dignificar o fim de vida. O foco é sempre na qualidade de vida, mas também na prevenção e alívio do sofrimento. E isso demora o seu tempo, não é fácil».
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), os Cuidados Paliativos «são cuidados de saúde» que se destinam «a pessoas que têm uma doença sem cura». São ainda «cuidados que melhoram a qualidade de vida dos doentes e das suas famílias, através da prevenção e alívio do sofrimento».
Além disso, os cuidados paliativos não cuidam apenas do corpo, já que «são uma resposta eficaz para os problemas físicos, psicológicos, sociais e espirituais».
E quem pode receber estes cuidados? Toda e qualquer pessoa que sofra de uma doença crónica e avançada, como doeças oncológicas, demências em fase avançada, doença crónica pulmonar, cardíaca, neurológica, hepática ou renal.

No Algarve, no âmbito da rede do Serviço Nacional de Saúde, apenas existem 10 camas de internamento em Cuidados Paliativos no hospital de Portimão. Há depois duas equipas intrahospitalares, uma na unidade de Portimão, outra na de Faro, «que dão apoio a todo o hospital, mas também podem receber doentes da comunidade para consultas». Há ainda três equipas comunitárias de cuidados paliativos, uma por cada Agrupamento de Centros de Saúde, ou seja, a do ACES Barlavento está sediada no Centro de Saúde de Lagoa, a do ACES Sotavento em Tavira e a Central em São Brás de Alportel.
No hospital de Faro, o maior da região, não há propriamente uma unidade de internamento, mas apenas «algumas camas dos cuidados paliativos dentro do serviço de oncologia».
Só que, salienta o enfermeiro Rui Correia, «para mim, isso não são cuidados paliativos. Pode-se fazer uma abordagem paliativa, ações paliativas, mas não são cuidados paliativos. Portanto, o hospital de Faro necessitaria de uma equipa de internamento». E as próprias equipas comunitárias, «necessitariam de um reforço, porque têm uma área de grande abrangência».
O preconizado é haver uma equipa comunitária por cada 100 mil habitantes. «Neste momento, nós temos cerca de 150/160 mil habitantes no Barlavento, pelo que necessitariamos aqui de uma equipa e meia…mas só temos uma equipa».
No entanto, salienta o enfermeiro, «nem todos os doentes com necessidades paliativas precisam efetivamente o apoio das equipas especializadas. Por isso é que nós iniciámos a capacitação dos profissionais, para eles estarem despertos, para poderem avaliar e identificar os doentes com necessidade de cuidados paliativos, mas para que eles possam também dar uma primeira resposta àquele doente. Ou seja, a primeira abordagem paliativa, digamos assim, deveria ser sempre pela equipa de cuidados primários. Essa teria que ser sempre a primeira resposta».
Só depois, se as medidas ou das ações implementadas junto do doente e da família não estiverem a surtir efeito, «podemos sempre articular com as equipas especializas, seja através de consultadoria por telefone, seja chamando mesmo as equipas ao terreno e a prestarem esses cuidados à população».
Uma das questões que a nova abordagem aos cuidados paliativos tenta desmistificar é que quem necessita desse apoio não tem de ser, necessariamente, levado para um hospital
«Em Portugal, um estudo feito em 2017 veio revelar que a maioria das pessoas gostava de morrer em casa», recorda Rui Correia. Só que, para isso, «também é necessário que lhes dêem condições para tal».
Essa é, na sua opinião, uma das mais valias da equipa comunitária, que pode «deslocar-se à casa das pessoas, em articulação com os cuidados de saúde primários e com a família».

Com o envelhecimento da população, em Portugal serão cada vez maiores as necessidades de cuidados paliativos. No entanto, salienta Rui Correia, em rigor não se sabe quantas pessoas precisam dessa intervenção em todo o país.
«O que se sabe hoje é que os dados de 2018 do Observatório Português para os Cuidados Paliativos apontavam para cerca de 110 mil pessoas a necessitar deles. Na realidade, tanto o Observatório como a Associação Portuguesa para os cuidados paliativos pensam que este número está muito baixo e acreditam que as necessidades serão maiores».
Sendo Aljezur um dos concelhos mais envelhecidos do Algarve, o projeto de mapear as necessidades locais assume maior importância. O que o projeto Palliare+ se propõe «é que, até 2026, encontraremos as pessoas com doenças crónicas, identificaremos, o mais cedo possível, se de facto estas pessoas necessitam de cuidados paliativos ou não, para que a equipa do Centro de Saúde possa iniciar uma abordagem paliativa o mais cedo possível. Esse é o nosso foco no projeto».
Até agora, e porque o levantamento só começou em Agosto, já foram identificadas, na freguesia de Odeceixe, partindo da plataforma de dados do Centro de Saúde, mas depois visitando e avaliando no terreno, 18 pessoas a necessitar de cuidados paliativos. «Mas ainda não acabámos a freguesia», avisa o enfermeiro, que revela que o levantamento será feito freguesia a freguesia aljezurense, em todas elas.
Baseando-se numa escala de avaliação desenvolvida pelo Instituto de Oncologia da Catalunha, «mais ou menos 10% da população do concelho de Aljezur terá necessidade de cuidados paliativos. Se pensarmos que são 6 mil residentes, estamos a falar de 600 pessoas».
E se uma pessoa de Aljezur tiver uma doença crónica incurável ou um familiar nessa situação, o que deve fazer? Deve contactar o Centro de Saúde?
«Sim, deve falar com o seu médico ou enfermeiro de família. Eles são as melhores pessoas para fazer a primeira avaliação e iniciarem a abordagem paliativa». Em Aljezur, todos os médicos e enfermeiros têm a «formação básica», pelo que «já não têm desculpa» para não encaminharem bem os doentes e as suas famílias.
Rui Correia admite que o desconhecimento sobre o que são os Cuidados Paliativos e a estrutura que, para os prestar, existe no Algarve, tem sido uma das «grandes barreiras», mesmo entre os profissionais de saúde.
Precisamente para acabar com esse «ciclo vicioso», pelo menos em Aljezur, teve lugar o tal curso de formação.

O enfermeiro Rui Correia está prestes a acabar, no final de Agosto, o seu estágio na Unidade de Cuidados na Comunidade Ribat, de Aljezur. Mas o projeto do mapeamento das necessidades irá continuar, até 2026, através da enfermeira Graça Pedro, que é a responsável pela UCC.
Um dos sonhos de Rui Correia, de 39 anos, natural de Olhão, mas a trabalhar no Centro de Saúde de Lagos, é que o projeto Palliare+ possa sair das fronteiras do concelho da Costa Vicentina. «A nossa ambição é levar este projeto a outras unidades que demonstrem interesse».
Certo é que Portugal precisa de investir, e já, nos Cuidados Paliativos. «A OCDE diz-nos que, em 2050, Portugal é o país mais envelhecido da Europa e o terceiro mais envelhecido do mundo. Se nós agora já temos os problemas que temos com o envelhecimento, se pensarmos em 2050, as consequências serão muito piores, se não fizermos nada», sublinha.
«E isto é também um alerta para que haja um investimento da parte do governo, porque até há pouco tempo, durante vários meses, os cuidados paliativos estiverem sem a sua Comissão Nacional a funcionar. E esta é quem lidera ou quem desenvolve os planos estratégicos para os cuidados paliativos. Se não tivermos ninguém no comando, a dar as orientações, é complicado que haja desenvolvimento dos cuidados paliativos», conclui o enfermeiro Rui Correia.
A terminar, o enfermeiro aponta para duas das fotografias da exposição patente em Aljezur e diz: «cuidados paliativos pode passar até por ajudar as pessoas a cumprir um sonho». Numa das fotos, está Rui Correia com um doente que, com a ajuda do enfermeiro e do fisioterapeuta, foi a Lisboa cumprir o seu sonho de conhecer o novo estádio do Sporting.
Fotos: Enfermeira Ana Sousa
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