O maior dos Data Center e mais uma data de interrogações

Expandir a Rede Natura 2000 para cima de terrenos de uma antiga central termoelétrica a carvão e áreas contíguas, solos urbanos classificados há mais de uma década por um plano de urbanização de uma zona efetivamente industrial, além de contraditória e esquisita, não é uma decisão de fácil compreensão

Uma empresa de capitais americanos e britânicos irá investir 3,5 mil milhões de euros num hiper Data Center em Sines, um mega centro de dados que, segundo o Secretário de Estado da Internacionalização, em declarações à Lusa em abril passado, “tem o potencial de ser o maior investimento estrangeiro captado pelo país desde a Autoeuropa”.

Oficialmente anunciado pelo Primeiro-Ministro aquando da inauguração do EllaLink, um cabo submarino transatlântico que constituirá uma autoestrada para a transmissão mais rápida de dados digitais entre a Europa e a América Latina, o “maior Data Center do sul da Europa” será construído na Zona Industrial e Logística de Sines (ZILS) e, de acordo com os responsáveis pelo projeto, poderá criar até “1200 postos de trabalho diretos altamente qualificados”.

Previsto implementar em localização gerida por uma empresa do setor empresarial do estado, nas imediações da antiga central termoelétrica a carvão, em terrenos abrangidos pelo Plano de Urbanização da ZILS classificados como solos urbanos, o empreendimento, entretanto também chancelado de PIN, além da vertente sócio-económica de transição digital e geração de emprego qualificado, é apresentado como tendo uma vincada componente ambiental de transição energética: será totalmente alimentado por energias renováveis e o arrefecimento dos edifícios será feito com água do mar.

Tudo parecia correr de feição até se perceber que, através da aprovação de um decreto regulamentar, aprovado em Conselho de Ministros em fevereiro de 2020, se redelimitou a Rede Natura 2000, estendendo-a para os terrenos em causa, classificando-os como Zona Especial de Conservação (ZEC). Tocaram todas as campainhas.

Ainda que em solos urbanos, ter terrenos classificados como Rede Natura 2000 implica, regra geral, que as operações urbanísticas tenham de ter avaliação de incidências ambientais ou, nalguns casos, avaliação de impacte ambiental.

E mesmo que venham a revelar-se compatíveis com estatutos como o da ZEC, o licenciamento dos projetos, sejam ou não PIN, é incontornavelmente mais demorado. Daí que a expetativa, igualmente tornada pública, de haver um primeiro de cinco edifícios que compõem o Data Center pronto a inaugurar em 2023 possa estar comprometida.

A história não nos habituou a que, antes da tomada de decisões como a do referido decreto regulamentar, seja prática corrente acautelar se determinada proposta implica ou não, e em que medida, com outros instrumentos de planeamento do território. Ou a que, em homenagem à proporcionalidade decisória, seja habitual fazerem-se determinadas cedências sectoriais em abono da estabilidade e consistência do quadro normativo.

Esse é deveras um papel de coordenação que as diferentes tutelas do ordenamento do território vêm sucessivamente incumprindo, com os efeitos erodentes que se conhecem ao nível da confiança dos agentes no sistema de gestão territorial.

Concomitantemente, é claro que as novas ZEC da Rede Natura 2000 invadiram o Plano de Urbanização da ZILS, aprovado em 2008, sem pedir licença, o que, aliás, não levantaria questões se, em face de notícias como as que vieram recentemente a público, simples e objetivamente se esclarecesse quais são os fundamentos que motivaram a classificação daqueles terrenos enquanto tal.

E isso impunha-se. Convenhamos que expandir a Rede Natura 2000 para cima de terrenos de uma antiga central termoelétrica a carvão e áreas contíguas, solos urbanos classificados há mais de uma década por um plano de urbanização de uma zona efetivamente industrial, além de contraditória e esquisita, não é uma decisão de fácil compreensão para quem quer que seja. Houvesse ou não um novo hiper Data Center na calha, fosse ou não um investimento singular e de indiscutível credibilidade, e o assunto sempre mereceria um esclarecimento cabal por quem de direito.

Afinal, que habitats e espécies com estatuto de proteção ali existem? Que trabalhos de campo foram feitos para comprová-lo ou sequer indiciá-lo? Ao fim e ao cabo, que interesse conservacionista direto ou indireto fundamentou o alargamento da Rede Natura 2000 para aqueles terrenos?

 

Autor: Nuno Marques é Urbanista, ex-vice-presidente da CCDR/Algarve (2012-2020)

 

 

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