Duas cidades na mesma cidade

António Covas reflete sobre cidades convencionais e cidades inteligentes

Os territórios digitais abrem o caminho para uma outra perspetiva de olhar para os problemas de desenvolvimento urbano e territorial.

Estou, desta forma, a sugerir que o mapeamento convencional de fazer território dá lugar a uma outra cartografia menos convencional e mais virtual de desenhar a cartografia territorial, ou seja, estou a sugerir que podem existir várias cidades na mesma cidade e, assim, a somar realidade à realidade já existente, criando assim uma nova oportunidade para o desenvolvimento dos territórios. Como a tabela seguinte deixa entender.

 

 

O modo convencional tem uma determinada georreferenciação ou cartografia territorial, se quisermos, um padrão de mobilidade mais fixo, mas, também, um modo de sociabilidade e comunicação mais físico e presencial, se quisermos, mais emocional. O modo algorítmico ou digital tem uma georreferenciação diferente, um padrão-fluxo e uma cartografia mais móvel, bem como uma sociabilidade e comunicação mais intangíveis e virtuais.

Se observarmos os dois modos de ocupação do território pelo prisma das três inteligências (racional, emocional e artificial) verificaremos que a inteligência emocional sai claramente perdedora quando passamos do modo convencional para o modo digital. Ora, é a inteligência emocional que melhor consubstancia quer a ocupação do território e a nossa relação com a natureza, quer a provisão sentimental para a comunicação e a sociabilidade humanas.

Ora, esta constatação é plena de consequências quando olhamos a política de ordenamento e o planeamento urbanístico das grandes cidades, pois na mesma cidade temos dois universos significantes em profunda interação.

Como se fossem duas cidades na mesma cidade: o universo dos problemas materiais e tangíveis que precisam de ser digitalizados e virtualizados (a virtualização da realidade) e o universo dos imaginários virtuais (o realismo virtual) que aguarda, igualmente, para ser convertido em realidade tangível e material e outras tantas comunidades reais.

Nesta cidade a duas velocidades fica por saber como evoluem as respetivas cartografias territoriais e as representações do espaço público, como se acomodam os espaços ditos verdes, qual é a adequação da arquitetura urbana a esta dupla velocidade e como se distribui o nosso padrão de mobilidade nesse contexto.

 

Os modos e as plataformas, entre o in situ e o ex situ

No modo convencional os cidadãos vão ter com os serviços que estão fisicamente estabelecidos nos locais de residência de acordo com uma certa geografia urbana. Os percursos são familiares: o quiosque, a casa das apostas, o café, a loja, o serviço público, a agência bancária, o posto dos CTT, a farmácia, a livraria, a biblioteca, o consultório, o restaurante, a galeria, a sala de conferência, entre muitos outros locais.

No modo digital e, em muitos casos, são os serviços que vêm ter connosco, em linha e no terminal do nosso smartphone: o jornal online, o jogo online, as compras online, as encomendas online, o e-government e e-banking, a refeição takeaway uberizada, o teletrabalho e a telemedicina, as visitas digitais aos museus e galerias, o e-book, os eventos nas redes sociais, os webinares, entre outros. Parece, assim, que o fixo virou fluxo.

Além disso, a Covid-19 obrigou a reconsiderar as deslocações, concentrações, serviços, espaços de lazer e recreio, o universo desportivo, a arquitetura urbana do espaço público, ou seja, tudo o que diz respeito à ocupação e distribuição pelo território. Ainda é cedo para perceber o impacto nos modos de organizar a cidade, mas nada ficará como dantes.

No modo convencional a cidade está verticalizada, o poder está centralizado e domina a cidade. O universo que prevalece é o universo dos equipamentos, infraestruturas e serviços públicos, ou seja, o universo das autoridades públicas. No modo digital e algorítmico o código domina a cidade, a cidade está mais horizontalizada, as plataformas colaborativas partilham o poder, um poder mais lateral que dispensa, em certas condições, a intermediação das autoridades públicas.

Não falamos de cidade dual, mas de plataformas públicas, privadas e cooperativas que procuram ainda uma base colaborativa de entendimento. Quando alcançarem esse objetivo teremos, seguramente, uma outra cartografia, um outro padrão de mobilidade, um outro território espaço-público.

No plano técnico, as plataformas, os algoritmos e os aplicativos criarão duas realidades distintas, mas complementares: as atividades in situ de presença física direta e as atividades ex situ de controlo e monitorização à distância. Como é obvio, os planos de ação compreenderão sempre as duas atividades em dosagem variada de acordo com o respetivo planeamento.

Num plano mais substantivo, porém, a realidade in situ é um espaço cognitivo onde a comunidade local ainda tem alguma capacidade de observação-ação e, portanto, de diálogo e comunicação. Essa capacidade pode perder-se a partir do momento em que os novos dispositivos digitais tomam conta da ocorrência e começa a monitorização ex situ.

A partir desse momento, a linguagem do alfabeto das comunidades humanas dará, progressivamente, lugar à linguagem codificada da inteligência artificial (internet dos objetos). Doravante, os dados que registam a nossa passagem, a nossa rastreabilidade pessoal, serão a matéria-prima de base das plataformas e dos algoritmos. Deixamos de ser um cidadão freguês membro de uma comunidade local para ser um ficheiro, uma password, um número de conta ou uma notificação numerada.

No plano da mobilidade e ordenamento do território é obvio que tudo depende de uma complementaridade saudável entre as duas perspetivas in situ e ex situ. A lógica das plataformas e dos algoritmos é uma lógica sem solo e com um front office de intermediação muito mais reduzido, enquanto a lógica in situ é uma lógica mais administrativa e com um front office presencial mais numeroso. Por exemplo, a loja do cidadão já mudou a cartografia do espaço público que estava, antes, mais disperso, a extensão dos serviços online irá modificar ainda mais essa cartografia territorial. Está verdadeiramente em causa o conceito de “administração pública do território” tal como o conhecemos até aqui.

 

Notas Finais

Em síntese, precisamos, antes de mais, de uma boa inteligência institucional e coletiva para ligar os vários incumbentes em presença e esta é uma tarefa essencialmente política. Em seguida, precisamos de uma boa estratégia digital que cuide da cobertura do território e da literacia digital dos utilizadores, tendo em vista a formação de uma sólida inteligência territorial, uma vez que uma boa cobertura digital é determinante para um território possuir uma relevante produção e colheita de dados acerca da sua própria condição.

Depois precisamos de um bom governo dos comuns, por exemplo, uma comunidade intermunicipal, e de um centro de recursos digitais partilhados. Por último, uma linha de rumo e um horizonte largo que só uma agenda digital pode proporcionar, uma vez que não há cálculo algorítmico que seja capaz de corrigir discriminações ou lacunas nas políticas públicas de intervenção.

Finalmente, esperemos que os défices de cobertura digital não anunciem a morte virtual dos territórios mais desfavorecidos. Agora, é o princípio ativo das redes que importa aplicar. Não podemos permitir que aos velhos problemas da coesão territorial se venha acrescentar agora o problema novo da fratura digital dos territórios. Agora, é o tempo da conexão digital, da inteligência coletiva, das plataformas distribuídas, da sociedade colaborativa e dos territórios e atores-rede. Nada será como dantes.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 



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