Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho

A associação estreita entre a economia das plataformas e o homo digitalis será, seguramente, um dos binómios que suscitará mais interesse e curiosidade no próximo futuro

Numa extremidade, a multidão e a internet. Na outra extremidade, o smartphone e o internauta. No meio, os operadores de telecomunicações, as plataformas digitais e as aplicações informáticas. Estamos a falar da revolução digital na sociedade e na economia e da emergência de um denominado homo digitalis, por enquanto pertencente, ainda, ao domínio da espécie humana

Este é o contexto geral, a digitalização da sociedade e do mundo do trabalho. Pela sua relevância reproduzo, aqui, o conjunto de medidas proposto pelo Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho.

Entre as várias medidas que constam do Livro Verde o destaque vai, desde logo, para quatro medidas principais que marcam bem o ritmo da transformação: efetivar e regular o direito à desconexão ou desligamento profissional, os modelos híbridos de trabalho presencial e à distância, as licenças parentais e o enquadramento fiscal e proteção social específica dos nómadas digitais”. Seguem-se as 21 medidas recomendadas pelo Livro Verde do Futuro do Trabalho.

1. Desenvolver uma Agenda de promoção do Trabalho Digno e Proteção Social Inclusiva, nas suas diferentes dimensões: precariedade, negociação coletiva, políticas ativas de emprego, formação e qualificação, defesa dos rendimentos, proteção social inclusiva e respostas específicas para segmentos mais desfavorecidos;

2. Apostar em áreas estratégicas e com potencial de crescimento do emprego, tanto em setores e competências ligados à digitalização e à tecnologia, à transição climática e energética e à internacionalização da economia portuguesa, entre outros, como nas áreas ligadas à satisfação de necessidades sociais, dos cuidados à saúde, etc;

3. Aprofundar e melhorar a regulação do teletrabalho nas suas diferentes dimensões, com salvaguarda dos princípios basilares do acordo entre empregador e trabalhador, sem acréscimo de custos para os trabalhadores, e apostando em modelos híbridos de trabalho presencial e à distância numa ótica de equilíbrio na promoção das oportunidades e mitigação dos riscos desta modalidade;

4. Efetivar e regular o direito à desconexão ou desligamento profissional;

5. Implementar instrumentos que garantam que o teletrabalho não penaliza especialmente as mulheres e que não agrava assimetrias na divisão do trabalho não pago, nem compromete a igualdade de género no mercado de trabalho;

6. Regular o trabalho em plataformas digitais, criando uma presunção de “laboralidade” para estes trabalhadores e um sistema contributivo e fiscal adaptado a esta nova realidade;

7. Posicionar Portugal como um país de excelência para atrair Nómadas Digitais reforçando desde logo as estratégias de comunicação e promoção do país, mas também criando um enquadramento fiscal e um sistema de acesso à proteção social específico para melhor integração dos “nómadas digitais”, nomeadamente no plano da contratação por empresas, no enquadramento fiscal destes trabalhadores, no acesso a seguros de trabalho, bem como no acesso à saúde e à segurança e à proteção social, e criando condições como uma rede nacional de espaços de coworking, com envolvimento de agentes públicos e privados, para criar melhores condições de atração deste público;

8. Regulamentar a utilização de algoritmos e de inteligência artificial no quadro das relações de trabalho, nomeadamente na distribuição de tarefas, organização do trabalho, avaliação de desempenho e progressão, de modo a prevenir enviesamentos e discriminações, nomeadamente de género;

9. Alargar em grande escala as competências digitais e de literacia de dados relacionadas com a inteligência artificial, bem como as competências ligadas às novas tecnologias, em diferentes setores e em todos os níveis de qualificação, assegurando também a adequação e atualização de modo ágil dos conteúdos formativos nas diferentes tecnologias;

10. Promover a utilização de ferramentas de inteligência artificial em diferentes domínios das políticas públicas e áreas da administração, investindo, em articulação com as universidades, centros de investigação e outros agentes, na capacitação do próprio Estado e da Administração Pública para o uso da IA;

11. Prevenir e regulamentar de modo restritivo a prática do employment background check, evitando que a avaliação do perfil e curriculum profissional do candidato a emprego seja feita com recurso a dados pessoais do próprio que não têm ligação direta com o tipo de atividade para a qual o mesmo se está a candidatar e que interferem com a sua esfera pessoal ou íntima;

12. Propor a criação de uma figura próxima do encarregado de proteção de dados, especificamente dedicada para a garantir a salvaguarda de dados pessoais e a privacidade do trabalhador;

13. Alargar as situações em que o trabalhador tem direito a teletrabalho independentemente de acordo com o empregador, em modalidade de teletrabalho total ou parcial, nomeadamente no âmbito da promoção da conciliação entre trabalho e vida pessoal e familiar, em caso de trabalhador com deficiência ou incapacidade;

14. Reforçar os incentivos à partilha entre homens e mulheres do gozo de licenças parentais e criar mecanismos de licença a tempo parcial no âmbito da promoção de uma melhor conciliação;

15. Permitir, em sede de negociação coletiva, modelos de trabalho que integrem também objetivos e prazos mensuráveis e concretos, além do número de horas de trabalho;

16. Adequar o sistema de segurança social às novas formas de prestar trabalho, promovendo o alargamento da cobertura a todos os trabalhadores, independentemente do respetivo vínculo jurídico, com acesso a proteção de níveis adequados e respeito pelos prazos do sistema previdencial, e simplificando o acesso e implementando uma reforma digital da segurança social, apostando na personalização das respostas e no uso da inteligência artificial.

17. Alargar a cobertura da negociação coletiva a novas categorias de trabalhadores, incluindo os trabalhadores em regime de outsourcing e aos trabalhadores independentes economicamente dependentes;

18. Estimular a cobertura e o dinamismo da negociação coletiva, através da introdução de incentivos e condições de acesso a apoios e incentivos públicos, financiamento comunitário e contratação pública relativos à existência de contratação coletiva recente;

19. Lançar uma Agenda Estratégica de modernização e reforço da formação profissional, e em particular da formação contínua, em articulação com os parceiros sociais incluindo quer os níveis mais elevados de formação avançada quer a elevação da base de qualificações, a modernização das infraestruturas e centros de formação, a melhoria do sistema de governação, o reforço da ligação aos agentes e tendências do mercado de trabalho, e a aposta em planos específicos para áreas estratégicas como o digital, a transição energética, a internacionalização ou os serviços sociais e cuidados de saúde;

20. Desenvolver um sistema de licenças associadas à formação e qualificação dos trabalhadores;

21. Reforçar as competências e a capacidade inspetiva da ACT nos domínios das áreas digitais, nomeadamente promovendo a interconexão de dados e o uso da inteligência artificial para identificação de situações de risco e melhor calibragem da sua atividade.

 

Notas Finais

Na sociedade digital, o trabalho assumirá formas e modalidades muito diversas, isto é, teremos de encontrar um denominador comum para o tornar convertível e transferível entre diversas modalidades: trabalho por conta de outrem, por conta própria, trabalho colaborativo, trabalho comunitário, trabalho voluntário, trabalho on demand, biscates e macjobs, trabalhos realizados aqui e no estrangeiro, etc.

Naturalmente, uma boa parte do que aqui se diz fica inteiramente dependente da consistência das respostas às questões relativas às plataformas digitais.

Um primeiro aspeto diz respeito à infraestruturação do território sem a qual o acesso fica bastante prejudicado. Um segundo aspeto diz respeito às competências digitais e ao grau de literacia digital de toda a população, o que, só por si, determina um questionamento radical dos modelos de ensino, educação e formação profissional.

Um terceiro aspeto diz respeito ao acesso aos dados existentes, o que levanta questões como a regulação da privacidade, mas, também, a modernização digital da administração.

Um último aspeto diz respeito aos incentivos para fazer emergir plataformas digitais adequadas às necessidades das economias locais e regionais, o que levanta a questão crucial dos modelos de negócio das plataformas.

No final, a associação estreita entre a economia das plataformas e o homo digitalis será, seguramente, um dos binómios que suscitará mais interesse e curiosidade no próximo futuro.

A economia das plataformas terá um impacto decisivo sobre inúmeros aspetos da nossa vida coletiva e, desde logo, no mundo do trabalho.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 



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