Vamos ser Geoparque Algarvensis!

Há uma literacia própria da paisagem, que necessita de ser convenientemente abordada, sob pena de a nossa perceção da paisagem ser um crime de lesa-pátria e um mau serviço prestado ao país

Geoparque Algarvensis – Foto: Vasco Célio/STILLS

Agora que é passada quase uma década sobre o Projeto Querença, nada melhor para celebrar esta data do que uma iniciativa com as características do projeto Geoparque Algarvensis, por isso, desejo vivamente que se converta rapidamente num projeto de geografia desejada e numa verdadeira comunidade de destino situada no coração do Algarve e do barrocal serra.

De resto, a presença da Cooperativa QRER é um excelente elo de ligação entre os dois projetos e garante essa relação quase umbilical. Muitos parabéns a todos os promotores e boa fortuna.

Como é sabido, neste espaço de opinião do Sul Informação, tenho escrito muito sobre as múltiplas dinâmicas em espaço rural. Temos agora mais um excelente pretexto. Entre a denominação Dieta Mediterrânica, a Via Algarviana e o Geoparque Algarvensis temos aqui um campo aberto de muitas possibilidades para o desenvolvimento do barrocal serra algarvio (BSA).

No sítio do Geoparque Algarvensis pode ler-se “O aspirante Geoparque Algarvensis Loulé-Silves-Albufeira a Geoparque Mundial da UNESCO é uma área territorial com limites bem definidos, que possuindo um património geológico de grande relevo a nível nacional e internacional, alia uma estratégia de geoconservação e um conjunto de políticas de educação e sensibilização ambiental, à promoção de um desenvolvimento socioeconómico sustentável baseado em atividades de geoturismo, envolvendo as comunidades locais, contribuindo para a valorização e promoção dos produtos locais.

Oficializado em 2019 como aspirante a Geoparque Mundial da UNESCO junto da Comissão Nacional da UNESCO, é membro observador no Fórum Português de Geoparques, tendo iniciado de imediato um trabalho de sensibilização junto das populações locais sobre o conceito de Geoparque em todo o seu território, estando a preparar o dossier de formalização da respetiva candidatura à rede Mundial de Geoparques da UNESCO”.

No mesmo sítio, pode ler-se ainda que “o geoparque visa contribuir para uma maior coesão social e territorial dos concelhos de Loulé, Silves e Albufeira, através de uma política de valorização do território, baseada no conceito de Geoparque UNESCO. A sua missão é promover a proteção, valorização e dinamização do património natural e cultural, destacando o património geológico, através da criação de conhecimento científico e educativo, a fim de proporcionar o desenvolvimento socioeconómico e sustentável do território, a fixação de pessoas e promoção da sua qualidade de vida”.

São objetivos genéricos do Geoparque:

• Contribuir para o aumento do sentimento de orgulho e pertença ao território dos seus habitantes e fortalecer a identidade do território;
• Potenciar a criação de um número de iniciativas locais e inovadoras dinamizadoras da economia local;
• Desenvolver novas fontes de receita que são geradas através de atividades de animação turística com base nos recursos geológicos;
• Promover a valorização e salvaguarda do património cultural, ambiental e geológico;
• Contribuir para a disseminação e implementação dos ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (ONU)”.

Numa nota da Câmara Municipal de Silves, pode, também, ler-se que “o Geoparque Algarvensis, através das histórias gravadas nas suas rochas e paisagens, conta vários capítulos da história do Planeta Terra, permitindo uma viagem no tempo de 350 milhões de anos. Evidenciam-se inúmeros episódios e fenómenos naturais e culturais com testemunhos neste território”.

“No concelho de Silves, na faixa São Bartolomeu de Messines-Amorosa-Vale Fuzeiros, encontra-se a maior expressão do conhecido Grés de Silves que regista o arrasamento de uma antiga cadeia montanhosa e o posterior nascimento do oceano Atlântico, com a deriva relativa da Europa, de África e da América”.

Complementarmente, na área protegida da Rocha da Pena, em Loulé, existe o geossítio de relevância internacional que motiva a criação do Geoparque Algarvensis – a jazida fossilífera do Metoposaurus algarvensis –, que ajuda a conhecer as condições ambientais e a fauna existentes na altura da origem do Grés de Silves, há 230 milhões de anos. Dando continuidade à longa história da Terra gravada neste território, em Albufeira, no Planalto do Escarpão e na zona onde se instalou a Ribeira de Quarteira, afloram rochas calcárias com fósseis de organismos que testemunham o mar tropical do tempo dos dinossauros que ali existiu, no período jurássico, há 164 a 145 milhões de anos.

E o executivo de Silves acrescenta; “Um Geoparque Mundial da UNESCO não é apenas um parque geológico, mas sim um projeto para o desenvolvimento sustentável de um território, onde se promove nos seus habitantes o sentimento de orgulho no seu património material e imaterial e fortalece a sua identificação e ligação com o território. Num geoparque todo o património natural e cultural faz parte de uma estratégia baseada no conhecimento, na educação, na formação, no desenvolvimento económico sustentável, na conservação e no bem-estar dos residentes, por isso, convidam-se todos a conhecer este projeto e a ser embaixadores do Geoparque Algarvensis”.

O desenvolvimento integrado do barrocal serra algarvio

Num artigo de opinião de 13 de setembro de 2018, no Sul Informação, sobre o projeto de uma fundação da dieta mediterrânica para o barrocal serra algarvio escrevi:

“O barrocal serra algarvio (BSA) é uma sub-região tão privilegiada como desfavorecida, que merece, por isso mesmo, uma atenção particular, pois ele é, de certo modo, a coluna vertebral de toda a região algarvia. O concelho de Loulé, a união de freguesias de Querença, Tôr e Benafim e a Fundação Manuel Viegas Guerreiro, pela sua centralidade e representatividade, são um bom ponto de partida para este projeto estruturante que, estou convencido, trará muitos jovens empreendedores ao barrocal serra algarvio. Acresce que o trabalho de fundações já existentes, como a Fundação Serralves e a Fundação Gulbenkian, pode ajudar-nos imenso nesta tarefa. As razões para este projeto revolucionário são muito variadas.

Em primeiro lugar, pelo esplendor da natureza e a exuberância da paisagem do BSA que nos revelam verdadeiros jardins do paraíso.

Em segundo lugar, porque as alterações climáticas são um risco permanente que põe em causa o valioso mosaico agro-silvo-pastoril do BSA.

Em terceiro lugar, porque o BSA reúne as principais joias da coroa da economia algarvia, no que diz respeito à agricultura tradicional e à dieta mediterrânica: dos produtos do montado ao pomar tradicional de sequeiro, do mel ao medronho e às ervas aromáticas, dos citrinos aos hortejos tradicionais e fruticultura da beira serra.

Em quarto lugar, porque após a apelação Dieta Mediterrânica conferida pela UNESCO é imperioso manter no BSA um núcleo de biodiversidade e conservação, se quisermos, um núcleo de ecologia funcional em estreita articulação com a arquitetura paisagística e as artes da paisagem.

Em quinto lugar, porque o BSA constitui um excelente ecossistema de acolhimento para promover um ambiente inteligente, isto é, a smartificação deste território.

Em sexto lugar, porque já existe um valioso património construído ligado aos recursos hídricos, no preciso momento em que a água é o bem mais raro e precioso.

Em sétimo lugar, porque a beleza do BSA é de tal modo extraordinária que pode muito receber no seu seio infraestruturas e equipamentos pedagógicos, terapêuticos e recreativos de qualidade e alcance internacionais.

Em oitavo lugar, porque a presença do festival literário internacional de Querença realizado pela Fundação Manuel Viegas Guerreiro (FLIQ) e a imagem do romantismo naturalista que ele projeta nos trazem à memória o simbolismo das paisagens literárias algarvias, um ativo imaterial muito valioso nos tempos que correm.

Finalmente, a coroar esta série de razões, e porventura o mais decisivo, os universos culturais e científicos de dois ilustres querentinos, os Professores Manuel Viegas Guerreiro e Manuel Gomes Guerreiro, que só por si são justificação bastante para levar por diante este projeto estruturante de âmbito nacional nesta região do Algarve”.

Estou, por isso, inteiramente convencido de que, não apenas prestamos tributo à antropologia sociocultural do Prof. Manuel Viegas Guerreiro e à perspetiva ecológica do homem muito cara ao Prof. Manuel Gomes Guerreiro, como, também, fazemos do Geoparque Algarvensis a cereja no topo do bolo dos projetos estruturantes do BSA, desta vez para salientar o seu valioso e singular património geológico.

Um Laboratório Colaborativo (LabCo) para o Barrocal Serra Algarvio

Aqui chegados, quero crer que os projetos estruturantes ligados à Via Algarviana, à Dieta Mediterrânica, ao Geoparque Algarvensis, ao património cultural associado aos recursos hídricos, à economia agroflorestal e ao turismo de natureza dos sítios da Rede Natura 2000, à ação sociocultural da FMVG, justificam, só por si, a criação de um Laboratório Colaborativo do Barrocal Serra Algarvio (LabCo do BSA) que, assim, seria o agente-principal deste imenso território-rede.

Os seus principais objetivos seriam os seguintes:

– Promover uma rede social do BSA que ligue esta região ao mundo,

– Promover uma estrutura de acolhimento para receber novos projetos e empreendedores,

– Promover a digitalização do BSA no que diz respeito a sistemas de informação geográfica e outros sistemas digitais,

– Promover uma pequena rede de espaços de coworking no BSA,

– Promover uma plataforma de crowd sourcing e de crowd funding para recolha de ideias, projetos e fundos de financiamento ( uma rede de microcrédito para pequenos projetos),

– Promover o marketing digital do BSA, em especial, o cabaz de primores do BSA,

– Promover uma plataforma tecnológica para as artes e a comunicação e a produção de conteúdos nestas áreas,

– Promover um programa de envelhecimento ativo e conceber serviços ambulatórios ao domicílio para os seniores do BSA,

– Promover uma rede de residências para voluntários, artistas, investigadores e estudantes que realizem projetos de investigação-ação.

– Promover a EN 124 como uma estrada panorâmica do BSE.

Por outro lado, a metodologia Smart Village poderia introduzir inúmeros benefícios nas áreas da energia e iluminação pública, água e saneamento básico, mobilidade e transportes, para citar apenas as mais comuns, mas, também, nos cuidados de saúde e serviços itinerantes, nos cuidados informais e voluntários, nos serviços de natureza, ambiente e proteção civil, na organização do banco de alojamento local, enfim, na rede de serviços agro-silvo-pastoris

Notas Finais

Seria uma janela aberta para o mundo ter no Algarve uma instituição que reunisse no mesmo programa de ação a antropologia sociocultural de Manuel Viegas Guerreiro, a perspetiva ecológica do homem de Manuel Gomes Guerreiro, as artes da paisagem de Gonçalo Ribeiro Telles e, agora, também, o valioso património geológico desta sub-região.

Sabemos que os sinais distintivos territoriais são a imagem de marca de um território. Um desses sinais é a sua distinção paisagística que integra vários elementos do seu património natural e cultural.

Ora, num tempo de turismo total não é apenas a gentrificação das vilas e cidades que nos deve preocupar, é, também, a ludificação excessiva e, sobretudo, o critério e o modo como dispomos e usamos recursos escassos como a água, o solo e a vegetação, no fundo a paisagem global que nos acolhe.

Por isso mesmo, não devemos simplificar. Todos nós somos, cada um à sua maneira, cuidadores da paisagem. Mas não nos iludamos. Há uma literacia própria da paisagem, que necessita de ser convenientemente abordada, sob pena de a nossa perceção da paisagem ser um crime de lesa-pátria e um mau serviço prestado ao país.

Esta seria, pois, a principal missão do LabCo do BSA, qual seja, a de abordar, num sentido muito compreensivo, a literacia paisagística, em sentido amplo, das populações.

A terminar, deixo a todos uma sugestão. Façamos uma visita às colinas mágicas do BSA e ao seu imaginário tão especial, celebremos a sua distinção paisagística, a presença das minas de água, a sublimação do lugar, o esplendor da luz e a geometria das formas geológicas, inspiremo-nos na simplicidade e na harmonia da ordem natural das coisas e teremos chegado aos jardins do paraíso, isto é, ao mais profundo e genuíno mediterrâneo algarvio. Se assim for, mais do que um turista ocasional, seremos um verdadeiro peregrino do espírito do tempo.

O Geoparque Algarvensis é esse verdadeiro peregrino do espírito do tempo, um embaixador singular do BSA, para promover as relações exteriores da região algarvia e o seu valioso património natural e cultural. Uma tarefa gigantesca, sem dúvida, mas a única que valerá certamente a pena.

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 
 

 
 



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