O triângulo virtuoso da baixa densidade

O plano traçado parece virtuoso, resta-nos cumpri-lo

Volto ao tema dos territórios de baixa densidade. Quero crer que a abordagem da baixa densidade pode ser realizada por via de um triângulo virtuoso: uma via pública intermunicipal, operada pelas CIM, através da sua base alargada de novas atribuições e competências, uma segunda via empresarial – a via agricultura, ambiente, alimentação ou via AAA – e uma terceira via mais territorial, colaborativa e horizontal – a via inteligência coletiva territorial ou via ICT que inclui as ações integradas de base territorial (AIBT).

Será da conjugação e convergência inteligente destas três vias ou modelos – CIM, AAA, ICT – que se fará, no próximo futuro, a abordagem da baixa densidade.

 

As CIM, um exemplo de ator-rede inteligente

No período pós-pandemia, nas nossas pequenas vilas e cidades do interior, caminharemos, progressivamente, para uma oferta integrada e complementar de bens e serviços comuns que utilizará as melhores práticas tecnológicas e digitais, mas, também, comunitárias e institucionais, tendo em vista impedir a migração de pessoas, bens e serviços, de qualquer natureza, para as áreas litorais e a emigração.

Agora que se discute a descentralização e a transferência de competências para os vários níveis de administração importa saber como vamos organizar a provisão intermunicipal de bens e serviços comuns fundamentais, por exemplo:

– A oferta de mobilidade suave e transportes públicos intermunicipais,

– A oferta de infraestrutura digital, rede e prestação de serviços digitais,

– A coordenação de medidas contra as alterações climáticas e a pegada ecológica,

– A coordenação do abastecimento intermunicipal de alimentos,

– A coordenação da rede de cuidados continuados e serviços de apoio domiciliário,

– A coordenação da rede de serviços culturais, lazer e recreio e terapêuticos,

– A oferta de rede de serviços de segurança e proteção civil contra acidentes graves,

– A oferta da rede de lojas do cidadão e outros serviços telemáticos,

– A coordenação da rede de serviços de ensino e formação profissional,

– A oferta de infraestruturas e equipamentos de acolhimento de jovens empreendedores.

Todos estes serviços podem ser objeto de uma gestão agrupada no plano intermunicipal e uma CIM pode desempenhar o papel de agente-principal do respetivo sistema produtivo local em benefício da economia da sub-região.

Não é uma tarefa fácil, mas é uma tarefa que vale a pena realizar pelos efeitos externos positivos e serviços de rede que cria sobre o rural remoto e profundo.

 

O modelo AAA, a rede colaborativa das agriculturas locais e regionais

Se pensarmos no pacto ecológico europeu, no programa de descarbonização, na mitigação e adaptação climáticas, na transição energética e no plano de ação digital não poderemos deixar de pensar nas transformações e oportunidades que se abrem para diversificar e consolidar a rede das economias e agriculturas locais e regionais.

Por outro lado, devido ao nomadismo digital, ao teletrabalho, ao comércio online, à multiplicação de espaços de coworking, incubadoras de start up e projetos empresariais colaborativos, mas, também, a opções familiares por estilos de vida mais saudável e tranquila, as organizações e entidades do grande país do interior têm à sua frente uma oportunidade única de promover a vinda de gente jovem qualificada para o chamado rural remoto e profundo.

Ora, o segredo aqui é a cooperação e ajuda mútua entre uma variedade crescente de modos de agricultura do modelo AAA (agricultura, ambiente, alimentação). Para tal, é necessário fazer a cartografia do território no que diz respeito aos seus projetos empresariais, maiores e mais pequenos, e a partir daí desenhar uma rede de cooperação e extensão agro rural que seja a peça nuclear de uma comunidade inteligente.

E essa cartografia do mundo rural irá referenciar:

– As agriculturas industriais e alimentares de base empresarial, bem capitalizadas, em processo de transformação digital e adoção de programas de sustentabilidade;

– As agriculturas de base cooperativa e associativa, em particular, as agriculturas de regadio confrontadas com a gestão de um recurso escasso, que precisam de rever os seus processos de uso eficiente de recursos, seja a água, energia ou o solo;

– As agriculturas especializadas de base forçada, com ou sem recurso a tecnologias sem solo, e com problemas similares de uso eficiente dos seus recursos escassos;

– As agriculturas especializadas de base ecológica, em sistemas alternativos de produção, sejam biológicas, de proteção e produção integradas, ou de agricultura dinâmica;

– As agriculturas comunitárias de proximidade em área urbanas e periurbanas, que carecem de organização, apoio técnico e rede logística;

– As agriculturas de nicho em novas cadeias de valor acrescentado, eco ou bio, com um marketing territorial inovador;

– As agriculturas certificadas, com denominação de origem e/ou indicação geográfica, que carecem, por exemplo, de mais capital humano e melhor rede de distribuição;

– As agriculturas agro-silvo-pastoris de montado, de base extensiva e multifuncional, que necessitam de muito apoio técnico e científico devido às doenças crónicas do montado;

– As agriculturas integradas em terroirs vinhateiros, mas não só, são um objeto privilegiado para o turismo rural;

– A agriculturas comunitárias de proximidade que são institucionalizadas para o aprovisionamento da cadeia de institutional food;

– As agriculturas regenerativas ligadas à bioeconomia e economia circular que são uma nova área de negócio muito importante para o lançamento de start up em meio rural.

O propósito deste alinhamento das várias agriculturas em redor de uma comunidade inteligente é muito simples. Há bastante conhecimento tácito acumulado num determinado território, novas fileiras e cadeias de valor em perspetiva, mas falta um ator-rede colaborativo que estabeleça uma conexão estreita de cooperação inteligente entre todos os atores em presença, o seu reagrupamento e, também, a sua sucessão geracional. E a cooperação é um recurso abundante, barato e acessível.

 

As bases do modelo ICT/AIBT para a baixa densidade

Uma rede bem articulada e colaborativa de agriculturas locais e regionais e uma gestão agrupada de bens e serviços comuns ao nível intermunicipal são uma base de partida indispensável para uma economia de rede e aglomeração que privilegia a inteligência coletiva territorial (ICT) e a formação de ações integradas de base territorial (AIBT) na abordagem da baixa densidade.

Eis o que poderia ser um guião ICT/AIBT para essa abordagem:

Em primeiro lugar, um programa de restauração, conservação e valorização biofísica e paisagística, isto é, um verdadeiro plano verde para o território em questão;

Em segundo lugar, um programa de aproveitamento das energias renováveis, tendo em vista a autonomia energética e em linha com as boas práticas relativas à poupança, conservação e eficiência energéticas;

Em terceiro lugar, um programa que tem em vista recuperar materiais e tecnologias tradicionais e promover novas soluções arquitetónicas de baixo consumo energético;

Em quarto lugar, um programa de incentivos a todos os modos de produção agro-biológicos que podem ser facilitados por um instrumento experimental como as hortas sociais e comunitárias;

Em quinto lugar, um programa que contribua para o ordenamento, o planeamento de atividades e a visitação em áreas de paisagem protegida e que ajude a disciplinar e a ordenar as outras formas de turismo em espaço rural;

Em sexto lugar, um programa que contribua para o ordenamento e planeamento de atividades em espaço agroflorestal e, em especial, as áreas integradas de gestão paisagística recentemente aprovadas;

Em sétimo lugar, um programa que recupere as artes, ofícios e tecnologias tradicionais e que crie projetos inovadores para os mais idosos e os mais jovens, em especial, nas áreas que associam o património natural e cultural;

Em oitavo lugar, um programa que promova a cooperação entre explorações agrícolas e microempresas como, por exemplo, o banco de solos intermunicipal, a rede de extensão rural ou as redes logísticas;

Em nono lugar, um programa que seja um instrumento de entreajuda, voluntariado e solidariedade social ativa, em especial, para os grupos mais vulneráveis da população, os alvos principais e o emblema desta metodologia de atuação;

Em décimo lugar, um programa orientado para a vida da comunidade local-rural, em todas as suas faixas etárias e organizado em redor das referências socioculturais mais relevantes que todos estes programas constituem.

As escolas superiores agrárias e as escolas profissionais agrícolas, as direções regionais de agricultura e do ambiente e as comunidades intermunicipais, as associações de desenvolvimento local e as organizações empresariais e profissionais de agricultores, são os parceiros certos para desenhar e compor estas AIBT.

 

Notas Finais

Em resumo, temos à nossa disposição três arranjos institucionais e produtivos – CIM, AAA e ICT/AIBT – e a questão essencial é pôr a funcionar plenamente as comunidades inteligentes que estão subjacentes e implícitas nestes arranjos, de tal modo que formem um triângulo operativo virtuoso.

Sejamos, porém, realistas. Conhecemos bem os fatores que bloqueiam o desenvolvimento rural, a saber: a baixa densidade não rende politicamente, não temos, de longa data, um mercado fundiário, lei de arrendamento rural, fiscalidade agro rural, banco de solos, rede de extensão, formação profissional, política associativa de rejuvenescimento, capital-semente, administração pública motivada, academia empenhada e comprometida, dignos desse nome e, enfim, agentes públicos e coletivos acreditados e representativos capazes de ação colaborativa inovadora no mundo rural, em especial no rural remoto e profundo.

Ficam no terreno as vetustas organizações corporativas de cúpula a fazer o habitual trabalho de lobbying institucional e político.

Estou, porém, convencido de que os impactos das grandes transições que atravessam esta década – climática, energética, ecológica, digital, demográfica, laboral, sociocultural – e os volumosos meios financeiros mobilizados, poderão ser um instigador poderoso de profundas alterações na abordagem da baixa densidade.

No plano político-institucional, o quadro parece claro: o programa operacional regional (POR) enquadra as ações nacionais e regionais no âmbito da respetiva NUTS II, no plano sub-regional e intermunicipal, os pactos territoriais de desenvolvimento das comunidades intermunicipais (CIM) enquadram as ações a essa escala, no plano local e rural das autarquias e associações de desenvolvimento local, os grupos de ação local (GAL) levam a cabo as estratégias locais e a abordagem desenvolvimento local de base comunitária (DLBC).

O plano traçado parece virtuoso, resta-nos cumpri-lo.

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 



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