O trabalhador precário e a sociedade intermitente

Trabalho temporário, trabalho precário, trabalho intermitente, trabalho independente, trabalho a tempo parcial, trabalho em outsourcing, trabalho uberizado em plataforma, tudo precário, tudo transitório, tudo passageiro, tudo fluido

Com a organização da Cimeira Social do Porto, em maio, a presidência portuguesa da União Europeia envia um sinal claro de que está preocupada com o seu pilar social. Vejamos o assunto pelo lado mais fraco do problema social, a saber, o trabalhador precário e a sociedade intermitente.

Trabalho temporário, trabalho precário, trabalho intermitente, trabalho independente, trabalho a tempo parcial, trabalho em outsourcing, trabalho uberizado em plataforma, tudo precário, tudo transitório, tudo passageiro, tudo fluido, esta é a via sacra dos chamados trabalhadores precários e pluriativos, a chamada sociedade intermitente do grande universo do capitalismo low cost.

Vejamos alguns aspetos desta realidade sócio-laboral no contexto europeu atual, no momento em que tudo é acelerado pela transformação digital e à boleia da pandemia da Covid-19.


Capitalismo low cost e sociedade intermitente

Estamos em 2021, em plena pandemia da Covid-19 e perante uma grave crise sanitária, social e económica. Nos últimos 20 anos, enquanto a questão social vai e vem sem uma solução satisfatória à vista entre os planos nacional e europeu, o capitalismo low cost aproveita e tira partido da vantagem da chamada “destruição criativa”.

Estamos a assistir a uma longa transição das sociedades pós-industriais para as sociedades do conhecimento e nessa transição o capitalismo low cost é, “apenas”, um aproveitamento perverso de uma deriva temporária desse capitalismo da sociedade do conhecimento que, pela sua própria natureza, não deveria tolerar por muito tempo tais efeitos perversos.

Vejamos o que está em causa nos mercados de trabalho e na transição para esta sociedade do conhecimento da era digital, afinal, uma sociedade cada vez mais intermitente:

– Do emprego industrial de massa para um trabalho mais qualificado e personalizado,
– Do contrato coletivo e sindicalizado para o contrato individual ou independente,
– Do emprego rígido para o trabalho de horário flexível (bancos de horas),
– Do emprego in situ para o teletrabalho ex situ sem limite aparente,
– Do emprego para a vida para a empregabilidade e aprendizagem ao longo da vida,
– Do emprego de rotina e repetitivo para o trabalho colaborativo e partilhado,
– Do emprego fixo mal remunerado ao trabalho e remuneração por objetivos,
– Do emprego em regime de insourcing para o trabalho em regime de outsourcing,
– Do emprego com direitos ao trabalho intermediado por agências de trabalho temporário,
– Do emprego com regulação própria para o trabalho em regime de prestação de serviços,

Como se vê, os sinais são muito contraditórios. Desde logo, a intermitência cada vez maior do vínculo laboral e profissional, depois, a polarização social do capitalismo das plataformas com colaborações bem remuneradas para os trabalhadores mais qualificados, de um lado, e colaborações mal remuneradas, de rendimento variável e sem direitos para os trabalhadores uberizados, de outro.

Por fim, a falta de clarificação do modelo social europeu e a ausência de política regulatória para a transição digital.

Com efeito, dado o espectro largo deste capitalismo digital, o problema é, em primeira instância, maioritariamente europeu e, neste contexto, a União Europeia está, claramente, necessitada de uma nova doutrina de política económica e social de que o chamado “pilar social europeu” é, por agora, uma imagem de marca muito distorcida e falaciosa.

A situação não seria, porventura, tão grave se não tivesse sido pulverizada, em tempo record, pelo capitalismo low cost, na sua versão mais intensiva e perversa.

Nos últimos vinte anos, a “destruição criativa e a inovação disruptiva” operadas pelas grandes plataformas tecnológicas de alojamento, transporte, reserva turística, meios de pagamento, logística e distribuição e outsourcing, criou bolhas gigantescas nestes setores e fez proliferar os gig workers e a geração slasher, ou seja, o universo dos trabalhadores precários e intermitentes.

Aqui chegados, e perante a atual aceleração digital, ficamos com a sensação amarga de que a covid 19 veio “chamar a atenção e repor a ordem”, lá onde as instituições políticas e sociais tinham falhado e pecado por defeito.

 

O pilar social europeu e o paradoxo da integração do fator trabalho

Estamos em 2021, em plena pandemia, e com quatro grandes transições no horizonte: a transição climática e energética, a transição demográfica, a transição digital e a transição do modelo social europeu, em resultado de alterações profundas nos fluxos migratórios, na estrutura dos mercados de trabalho e nos modelos de segurança social.

Estas alterações profundas ocorrem simultaneamente e não nos deixam ver claro a luz trémula do horizonte. Além disso, permitem que se forme uma contradição manifesta entre a afirmação de que somos uma “generosa comunidade de direitos sociais fundamentais”, de um lado, e o realismo cruel do empobrecimento crescente das classes médias motivado por encerramentos, deslocalizações e transformações empresariais, cada vez mais intensas e frequentes, de outro.

Esta divergência crescente não pode deixar de causar danos profundos sobre as convicções pessoais em redor da ideia e do projeto europeus, em particular, quando existe uma abundante retórica política sobre o chamado pilar social europeu.

Na verdade, no plano europeu, perante uma das maiores crises da nossa história recente, paira sobre as sociedades europeias um perigo ameaçador, qual seja, o de que regressem as velhas asserções da economia ortodoxa que converte a política social em instrumento de ajustamento da política macroeconómica conjuntural.

Para já, essa questão parece ter sido adiada. As medidas tomadas pelas instituições europeias nesta conjuntura são benignas quanto baste: a suspensão das regras do pacto de estabilidade, o plano de recuperação, a criação de dívida conjunta europeia, o plano de compras de ativos do BCE (juros baixos).

Essa é, também, a razão pela qual as opções europeias de política social, na atual conjuntura, são muito sensíveis, já que uma bitola social elevada pode lesar, no curto prazo, as pequenas e médias empresas mais frágeis e uma bitola mínima pode fazer estagnar a própria política social (rendimentos mínimos) e a economia no seu conjunto.

Nesta fase da política europeia, em plena presidência portuguesa, as dúvidas são, porém, imensas. A todo o momento, o regresso da liberalização das trocas internacionais, a subida das taxas de juro nos mercados e o incumprimento das obrigações bancárias e financeiras (moratórias e crédito malparado) tornarão insustentável muitas das situações socio-empresariais e familiares atuais.

É de esperar, nessa altura, que o problema social agravado volte à agenda europeia, seja sob a forma de pilar social europeu, de espaço social europeu ou modelo social europeu.

A retórica política não falta, mas, percebe-se, agora, melhor o “território suspeito” em que se move a política social do próximo futuro e, também, as dúvidas sobre a integração do fator trabalho.

A aventura europeia, está, por isso, numa encruzilhada, pelo menos na sua atual configuração. A pergunta que se impõe é muito simples na sua formulação: está a União Europeia em condições de regular a uberização, a precarização e a intermitência do mercado de trabalho, de modo a prevenir e moderar os efeitos negativos que uma associação perversa entre capitalismo low cost e uberização low cost pode provocar nas relações sociais de trabalho?

Não existindo, até agora, uma resposta para esta questão, ocorre, no plano da integração económica, o que poderíamos designar de paradoxo da integração do fator trabalho: quanto mais avança o processo de integração económica na Europa, maior é a sobrecarga de esforço de ajustamento que recai sobre o fator trabalho e todas as políticas públicas que giram à sua volta.

Na verdade, as competências nucleares em matéria de política laboral e social estão sediadas nos Estados membros, cabendo à União Europeia regular e regulamentar aqueles aspetos que mais contendem com o funcionamento do mercado único, por exemplo, aqueles que permitem a prática de dumping social ou prejudicam a melhoria das condições de vida e de trabalho ou, ainda, aqueles aspetos relativos aos fluxos migratórios que colidem com o bom funcionamento dos mercados de trabalho.

Acresce que a pandemia da covid 19 pode funcionar como detonador das quatro grandes transições antes referidas e estar na origem de desigualdades sociais muito mais gravosas.

Quer dizer, está em causa uma nova doutrina dos direitos sociais fundamentais, um outro modelo social europeu e uma política social mais proativa que saiba conciliar, em tempo real, segurança e saúde pública, flexibilidade e empregabilidade nos mercados de trabalho.

Eis, em toda a sua crueza, o paroxismo a funcionar: quanto mais progride a integração económica mais constrangimentos se criam à volta do fator trabalho.

As instituições europeias são, elas próprias, reticentes a uma regulamentação social feita no quadro europeu com receio de que este espaço económico seja vítima de “um excesso de espaço social europeu”, isto é, que a diversidade social afunile no espaço social europeu, pondo em causa a competitividade europeia face à concorrência exterior.

Ora, a teoria económica tinha-nos, aparentemente, convencido de que a liberdade de circulação do fator trabalho conduziria, a prazo, à igualização da remuneração respetiva.

De que nos queixamos, se a teoria não nos disse quando ocorreria tal igualização!

 

Notas Finais

Estamos numa situação deveras paradoxal. De um lado, uma crise profunda nos planos sanitário, económico e social a reclamar uma intervenção esclarecida de todas as instituições, nos planos nacional e europeu.

De outro lado, na era das redes digitais, nada mais paradoxal e contraproducente do que a superioridade política e institucional da ordem burocrática da União Europeia, tudo o que as “redes sociais distribuídas” não gostam.

E o que pensam as gerações mais jovens, filhas da nação-internet e da revolução digital? Elas nunca suportarão a megalomania e a omnipresença das instituições europeias, pela simples razão de que elas apostam na “desintermediação institucional e burocrática” da ordem estabelecida.

Ora, este é o princípio, mesmo, da chamada uberização da sociedade de que o capitalismo low cost tira partido como ninguém e que, em conjunto, formam as bases do precariado e da sociedade intermitente.

Como facilmente se comprova, nesta sociedade intermitente, devido à quebra estrutural do emprego de qualidade, estaremos condenados a uma sociedade de regimes laborais muito diversos, uns em part-time, outros em regime de freelance, outros ainda em regime colaborativo, sob muitos formatos, condições e reputações, se quisermos, uma sociedade onde o individuo se produz a si próprio.

Capitalismo low cost, precariado, sociedade intermitente, tudo é possível. E, já agora, o alerta, também, para a região do Algarve, pois é real o risco de captura pelo capitalismo low cost, sobretudo se a inércia do sistema de política regional conduzir à convergência entre turistificação, ludificação, gentrificação, uberização dos serviços e pauperização das classes trabalhadoras.

Cuidado, pois.

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