O acaso, a necessidade e os acidentes fortuitos

Só consigo vislumbrar, com esta generalização tecnológica e digital, um vencedor indiscutível, as companhias de seguro multirrisco

Em textos anteriores (16 julho de 2020 e 19 setembro de 2020), já escrevi sobre os riscos da constelação tecnológica formada pela associação das redes 4G+5G.

Se pensarmos, agora, no polígono digital que o sistema 5G nos proporciona – Big Data e analítica de dados, computação em nuvem e periférica, realidade aumentada e virtual, internet doméstica e industrial, inteligência artificial – e nas propriedades emergentes que este polígono nos oferece, estaremos muito mais próximos de uma sociedade de interdependência e interação máximas, logo, de incidentes imprevistos, descobertas acidentais e de muitos acidentes fortuitos.

Senão vejamos. Imagine o leitor o seguinte cenário no final desta década:

– A generalização da robótica industrial e da agricultura de precisão,
– A generalização da domótica doméstica e familiar,
– A generalização da inteligência artificial e dos assistentes inteligentes,
– A generalização dos veículos autónomos,
– A generalização dos serviços digitais à distância,
– A generalização do comércio online e dos pagamentos digitais,
– A generalização da videovigilância e da biossegurança,
– A generalização do 5G e da radiação eletromagnética,
– A generalização dos nano-implantes e da realidade aumentada e virtual,
– A generalização da adição digital.

Aqui chegados, só consigo vislumbrar, com esta generalização tecnológica e digital, um vencedor indiscutível, as companhias de seguro multirrisco, e um vencido mais ou menos óbvio, os novos segurados multirrisco destas companhias de seguros, que serão, doravante, objeto de uma vigilância apertada em nome da sua pretensa segurança individual.

E do que estamos a falar? Estamos a falar de incidentes de todo o tipo provocados por máquinas inteligentes e automáticas, de acidentes causados por veículos autónomos, de burlas e vírus informáticos de todo o género, de videovigilância, implantes e biossegurança imersivas e intrusivas, de violação grosseira da privacidade pessoal, de problemas graves com serviços de telemedicina, de casos graves de saúde pública por excesso de radiação eletromagnética, de problemas sérios de ética médica, etc.

E qual foi o caldo de cultura tecno-digital que nos trouxe até aqui?

– Em primeiro lugar, a fúria do capitalismo digital em generalizar o negócio informático por via da digitalização de todos os aspetos da nossa vida quotidiana,

– Em segundo lugar, a polarização social do mesmo capitalismo digital ao criar, no topo, uma nova classe de privilegiados e, na base, uma gigantesca placa giratória de trabalhadores precários, intermitentes e empobrecidos,

– Em terceiro lugar, a hipervelocidade e o hipertexto das inúmeras aplicações digitais que nos colocam face a face e em completa rota de colisão, sem uma métrica própria para aferir os acidentes e danos causados,

– Em quarto lugar, a nossa vida quotidiana de screeners a tempo inteiro que nos transporta para uma realidade paralela e ambientes simulados e dissimulados onde os nossos sentidos perdem todo o sentido,

– Em quinto lugar, nesta virtualidade real cresce todos os dias a criminalidade informática e o cibercrime, onde o velho roubo por esticão deu lugar à burla informática,

– Em sexto lugar, a nossa inteligência e as faculdades humanas estão a ser transferidas para fora do seu habitat biológico natural, para se instalarem em dispositivos nanotecnológicos transumanos de realidade aumentada e virtual,

– Por último, o turbilhão de informação nas redes sociais é de tal ordem que estamos cada vez mais próximos de estados mentais de delírio e alucinação e com um défice permanente de atenção.

Como é que chegámos até aqui? Vejamos alguns aspetos de uma primeira chave de leitura.

– Em primeiro lugar, a convergência entre as grandes transições desta década, as consequências da pandemia e os seus inúmeros efeitos externos, não nos deixam ver claro a distinção entre os fins e os meios, neste caso, entre humanidade e tecnologia;

– Em segundo lugar, passámos, de certo modo, a viver no reino das máscaras; depois das nossas próprias máscaras pessoais chegaram as máscaras virtuais e agora, também, as máscaras antivirais; quer dizer, vivemos, cada vez mais, em ambientes simulados e virtualizados utilizando écrans e máscaras conforme as circunstâncias e as conveniências; no reino das máscaras tudo parece muito furtivo e todos os acasos e acidentes fortuitos podem acontecer;

– Em terceiro lugar, com a chegada da rede 5G houve uma explosão de realidade aumentada e virtual; chegou, também, a vez dos objetos, por via da “internet das coisas”, começarem a ditar, também, a sua realidade;

– Em quarto lugar, imersos na constelação 4G+5G, explodiram os serviços e o trabalho à distância e, também, o nomadismo digital; criaram-se mesmo incentivos para estimular os nossos nerds a viver em regime de topoligamia, isto é, casados com vários lugares de trabalho e lazer;

– Em quinto lugar, quando todos – pessoas, coisas e inteligência artificial – comunicarem entre si no grande polígono digital e cada um usando uma linguagem simbólica convertível, teremos atingido o paroxismo absoluto, uma espécie de histeria coletiva de informação e comunicação num ambiente totalmente saturado; estaremos, cada vez mais, num campo desestruturado à beira do caos e é cada vez mais estreita a margem ou o limbo em que viveremos, no preciso momento em que experimentamos a sensação do risco iminente;

– Em sexto lugar, com a multiplicação dos acasos e incidentes fortuitos da economia digital 4G e 5G cresce, também, uma forte litigância e contencioso de responsabilidade que procuram dirimir o que é responsabilidade própria e o que é responsabilidade alheia e/ou coletiva; às externalidades do capitalismo convencional somam-se, agora, as externalidades do capitalismo digital, veremos se haverá Estado bastante e contribuinte que chegue para tanta socialização de prejuízos;

– Por último, para aprender a lidar com esta sociedade dos acasos e acidentes fortuitos, estamos todos a frequentar cursos online intensivos com o objetivo de desenvolver treino específico e capacidades especiais para entender e antecipar como se forjam e desenvolvem as interações fortuitas e os incidentes imprevistos; com o tempo, corremos o risco de nos convertermos numa sociedade de caçadores furtivos.

Notas Finais

Eis a vertigem em que estamos envolvidos: chips e sensores, drones e câmaras de vigilância, interfaces cérebro-computacionais e nano-implantes, máquinas inteligentes e mestres algoritmos, robots e veículos autónomos, torres e antenas de radiação eletromagnética.

Neste ambiente congestionado e num campo eletromagnético cada vez mais saturado, seria impossível não acontecerem interações fortuitas, incidentes imprevistos, impactos inusitados, descobertas acidentais. Aqui chegados, estamos obrigados a multiplicar os ângulos de observação e as perspetivas de olhar para os problemas.

Quanto ao resto, estou convencido de que, neste novo ambiente de virtualidade real, a descontextualização que a inteligência artificial e automática carrega consigo nos fará passar inúmeras provações.

Não me surpreenderia, por isso, que o nosso nómada digital desenvolvesse uma capacidade especial de ubiquidade para lidar com interações fortuitas, investido, digamos, numa nova espécie de free raider ou caçador furtivo de acontecimentos fortuitos.

O nosso arsenal teórico e, muito em especial, o campo das ciências sociais e humanas, composto de conceitos, categorias, tipologias, padrões, normas e procedimentos, com origem no iluminismo moderno e na cultura analógica estão definitivamente postos em causa e a academia deve preparar-se para rever o seu estatuto científico eminente se não quiser ser um ator secundário que corre pelo lado de fora da realidade da cultura tecnológica e digital.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 



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