2045, a criatura separa-se do criador!

Vêm aí os transumanos

Vem aí a rede 5G, a inteligência artificial e as máquinas inteligentes preparam-se para nos pregar algumas surpresas. Uma dessas surpresas anunciadas é conhecida pelo mito da singularidade (Ganascia, 2018). Segundo este mito, a inteligência artificial e as máquinas inteligentes continuam a fazer o seu caminho em direção ao ponto de singularidade, o ponto onde a criatura se pode separar do criador.

Raymond Kurzweil, engenheiro e futurista, antigo conselheiro de Bill Gates, projeta um futuro impressionante para a interação entre o homem e a máquina nos próximos anos. A sua projeção mais impressionante é o chamado ponto de singularidade que ocorreria por volta de 2045.

Em dois livros, A Era das Máquinas Espirituais (1999) e A singularidade está próxima (2005), Kurzweil prevê que o progresso tecnológico nos transportará até um ponto em que a inteligência das máquinas será superior à inteligência humana. Aí terá começado a era do hibridismo transumanista e, mesmo, a era da pós-humanidade. O cérebro humano, limitado por natureza, não será capaz de acompanhar o crescimento exponencial da inteligência não-biológica que verá a sua capacidade, a cada década, multiplicada por mil.

Nesse momento terá começado a era dos seres transumanos e, mesmo, pós-humanos que é, também, um tempo de convergência, pois os humanos estarão cada vez mais instrumentalizados por dispositivos nanotecnológicos no interior do nosso habitáculo biológico e as máquinas inteligentes estarão cada vez mais humanizadas pela fusão da computação com as nanotecnologias e biotecnologias.

O avatar, que nós podemos visualizar em experiências de imersão digital nos jogos de computador, por exemplo, é a transcendência da nossa imagem em ambiente virtual. O ponto de singularidade significaria que o avatar salta dos écrans do computador, separa-se do criador e encarna um corpo material, um híbrido máquina-homem, dotado de uma inteligência superior. Na tradição hindu, um avatar representa um ser supremo, uma divindade, que desce ao mundo tangível para assumir um corpo matéria.

Como é fácil de imaginar, esse tempo de convergência será muito atribulado e irá pregar-nos algumas partidas pelo caminho. Até lá, o otimismo científico e a ética utilitarista vão continuar a sua imparável caminhada que nos levará da inteligência artificial ao transumanismo e à pós-humanidade. Vejamos alguns aspetos mais relevantes desta viagem até à “guerra das inteligências” (Laurent Alexandre, 2017).

 

  1. O ponto de singularidade

O ponto de singularidade é, antes de mais, um autêntico golpe publicitário que abre o caminho à tecnologia e à engenharia para prosseguirem a sua gloriosa caminhada até essa verdadeira apoteose do espírito.  Ao contrário, a singularidade acontecerá quase todos os dias, pois haverá surpresas todos os dias. Fixar um ponto na seta do tempo é um golpe publicitário, de resto, realizado com muito sucesso.

  1. Uma teoria do duplo movimento

A realidade à nossa frente é o espelho de um duplo movimento, de um lado, a inteligência biológica a caminho da sua artificialização por via de vários interfaces nanotecnológicos, do outro, a inteligência artificial a caminho da sua progressiva humanização, ou o hibridismo como tema central deste evolucionismo biotecnológico.

  1. O transumanismo, o ser humano como pura transição

Nesta evolucionismo biotecnológica o homem natural passa ao homem aumentado, este ao transumanismo e, uma vez atingido o ponto de singularidade, pode passar do transumanismo ao pós-humanismo. Nessa medida, para o transumanismo o ser humano é pura transição. Para lá do ponto de singularidade, as máquinas serão humanas mesmo que não sejam biológicas.

  1. O mito da eterna longevidade

Nesta evolução até ao transumanismo iremos passar da medicina terapêutica e reparadora até à medicina melhorativa e aumentativa e, assim, a morte pode ser adiada eternamente. Mais uma vez, um verdadeiro golpe publicitário que abre a porta à tecno-medicina, à mistura com uma grande oportunidade para celebrar a apoteose do espírito e o reino da criação em todas as suas dimensões.

  1. A corrida à perfeição, corrigir a lotaria genética

Na mesma linha do transumanismo, a biotecnologia, por via da engenharia genética e, consequentemente, da edição genética, estará em condições de iniciar a corrida à perfeição, ou seja, de corrigir a lotaria genética da atual condição humana. Estaremos, assim, perante um eugenismo de tipo novo.

  1. A insustentável leveza da consciência

De acordo com o transumanismo, as diferenças entre inteligência emocional e inteligência racional são uma função do grau de complexidade biotecnológica que as máquinas acabarão por atingir. Nessa altura elas terão atingido uma “consciência de si” por via de processos sofisticados de deep learning. De acordo com o transumanismo, mesmo que os neurocientistas nos digam que a geração da consciência se dá pura e simplesmente por processos bioquímicos o determinismo da evolução biotecnológica acabará por fazer vencimento.

  1. Uma ética utilitária, o fim da gratidão e da solidariedade

Com seres cada vez mais perfeitos por via da engenharia e edição genéticas, com uma longevidade crescente por uma medicina melhorativa e, portanto, com uma morte sempre adiada, deixa de haver razões para a compaixão, a solidariedade e a gratidão. Todos terão a sua oportunidade, a imperfeição terá sido abolida, tudo se resumirá a uma ética utilitária.

  1. Uma antropologia do positivismo e narcisismo materialistas

O determinismo biotecnológico, sob esta forma utilitária de materialismo transumanista, só conseguirá sobreviver se nós, os humanos imperfeitos e sempre inacabados, abdicarmos em definitivo perante uma antropologia do positivismo e do narcisismo e perante o golpe publicitário de uma nova ficção, de uma nova literatura do comportamentalismo evolucionista.

  1. Uma nova religiosidade e espiritualidade

De acordo com o transumanismo, não estará em causa a religiosidade e a espiritualidade que conhecemos, mas outras espiritualidades e religiosidades verão a luz do dia e irão iluminar-nos. Tal como na tradição hindu, após o ponto de singularidade, o avatar separa-se do criador e representa um ser supremo, uma divindade, que desce ao mundo tangível para assumir um corpo matéria e ser, naturalmente, acompanhado pelos prosélitos cada vez mais numerosos.

  1. Os limites ético-políticos perante o determinismo biotecnológico

Face a esta evolução biotecnológica imparável, a governação política estará obrigada, mais uma vez, a definir novos limites éticos e jurídico-políticos que preservem a espécie humana da sua loucura transumanista e pós-humanista, sob pena de um dia, a singularidade se manifestar, de forma surpreendente, por uma declaração dos direitos transumanistas dos avatares do transumanismo.

 

Notas Finais

O determinismo materialista do transumanismo, fundado no otimismo científico da biotecnologia e no individualismo arrogante da ética utilitarista, introduz-nos, mais uma vez, na grande tradição dos romances distópicos de que a recente republicação das obras de George Orwell, em especial o livro “1984”, é um bom sinal disso mesmo. Neste caldo distópico do transumanismo, o hibridismo homem-máquina assemelha-se a uma biopolítica e uma transição para outros universos de sentido e estados mentais que ainda desconhecemos.

O transumanismo pretende convencer-nos de que não há propriamente uma substância ontológica da nossa humanidade, ela é um simples recetáculo que recebe estímulos de todo o tipo que a vão configurando no tempo, pelo que a vida é uma categoria líquida onde o processo se sobrepõe à forma. Nesse caminho, a libertação das raízes biológicas seria um grande empreendimento espiritual em direção a Deus.

Em síntese, estamos, de novo, no limiar de uma era misteriosa, aquela que relaciona humanidade e tecnologia, plena de mistério, esperança e muitos perigos. A terminar, apenas, um alerta. Muitos falam de condicionamento e manipulação, de vigilância e polícia do pensamento e, mesmo, de uma novilíngua. Como já adivinharam, a culpa não é das máquinas, o problema somos nós, que somos frágeis e vulneráveis perante as novas corporações do big data, do cloud computing e da inteligência artificial e que nos deixamos ludibriar pelas apps de gamificação e ludificação, as bolhas de fake news e teorias da conspiração que apenas servem para nos infantilizar e distrair. E, por favor, não deixemos que o princípio da biotecnologia prevaleça sobre o princípio da humanidade. Em último caso, desliguemos a máquina da corrente.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático aposentado da Universidade do Algarve

 

 



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