Urbanismo, conectividade e interações acidentais

A cidade artificializada faz muitas vítimas à sua passagem:, as camadas sociais mais desfavorecidas que são atiradas para os subúrbios inóspitos e agressivos, os ecossistemas naturais e os centros históricos e os seus pequenos núcleos habitacionais

Na história das grandes inovações disruptivas esta é a 4ª revolução. A 1ª inovação disruptiva teve a ver com a máquina a vapor, a mecânica e a ferrovia que nos levaram até à 1ª revolução industrial. A 2ª inovação disruptiva teve a ver com a eletricidade e a produção industrial em massa. A 3ª inovação disruptiva teve a ver com a eletrónica, os computadores e a internet.

A 4ª inovação disruptiva tem a ver com a conectividade, a inteligência artificial e a computação cognitiva. Esta última inovação disruptiva é a da hipervelocidade, da máxima interdependência, das interações fortuitas e acidentais, com um impacto gigantesco na arquitetura, mobilidade e espaço público das cidades do futuro.

 

A conectividade das cidades do futuro

As cidades do futuro, por força do paradigma da rede, adotarão uma estrutura de geometria muito variável. Nuns casos, a cidade será uma área metropolitana de estrutura mais radial, em outros, uma cidade mais policêntrica, em outros, ainda, uma região-cidade administrada por um ator-rede dedicado.

Em todos os casos, a cidade do futuro será composta por comunidades inteligentes muito variadas e é a qualidade da sua conexão, intermediada ou não por um ator-rede, que nos dirá se se trata de uma comunidade de destino ou, ao invés, de uma simples coleção de indivíduos habitando um espaço comum sem qualquer propósito ou horizonte de futuro.

Essas comunidades inteligentes irão multiplicar-se, muitas delas promovidas por start up de fresca data, fazendo sobressair aquele que será um dos principais desafios do futuro imediato, a saber, a educação digital generalizada.

Eis, a título de exemplo, algumas áreas que serão objeto dessas redes digitais: a mobilidade suave e a micro mobilidade, as plataformas de serviços partilhados e à distância, as comunidades locais de energia renovável, as comunidades de segurança pública e privada, as comunidades de cuidados partilhados com a sociedade sénior, o envelhecimento ativo e os serviços ambulatórios, as comunidades de agricultura urbana, a grande área colaborativa do entretenimento e da cultura, entre outras.

Tudo mudará no fácies da cidade do futuro quando estas comunidades inteligentes estiverem em pleno funcionamento e totalmente conectadas.

Mudará a arquitetura urbana e o desenho do espaço público, a morfologia dos locais de trabalho e dos lugares de sociabilidade, os modos de deslocação e a utilização das vias de comunicação, algumas delas convertidas em infraestruturas ecológicas e corredores verdes, mas, também, a arte da paisagem urbana e a ética do cuidado, ou seja, a forma de tratar os grupos mais vulneráveis da população da cidade.

As cidades do futuro serão todas aquelas cujo modelo de organização social respeitará a cultura da natureza e a natureza da cultura e que devolverá ao cidadão o prazer do tempo, a razão de ser e o sentido da vida.

 

Os operadores biofísicos do urbanismo

Um outro aspeto da conectividade diz respeito aos operadores biofísicos do urbanismo. Na ecologia urbana da cidade do futuro, as infraestruturas ecológicas e os corredores verdes terão um lugar proeminente no planeamento, na prevenção e na terapêutica urbanas.

Estas infraestruturas ecológicas, que nós designamos aqui como os “operadores biofísicos da cidade em rede” serão essenciais na projeção territorial da cidade, pois elas poderão funcionar como as placas giratórias dos corredores verdes, das suas redes e como novos lugares centrais da cidade.

Recordemos, como exemplo: a habitação sustentável e a bio regulação climática, as comunidades locais de energia, a promoção da economia circular, os logradouros e a agricultura comunitária, a floresta urbana e multifuncional, os lagos bio depuradores e a compostagem urbana, os parques agrícolas periurbanos para abastecimento local de alimentos, a experimentação em agricultura vertical urbana e a construção de amenidades recreativas e terapêuticas.

Sabemos, também, que o crescimento desordenado causa a fragmentação dos ecossistemas naturais e condiciona o metabolismo circular das cidades, ao modificar, sobretudo, os cursos de água e a morfologia da paisagem.

As cinturas verdes do século XIX foram construídas para conter o crescimento desordenado das cidades americanas, a poluição dos rios, as inundações e os alagamentos, mas, também, para acautelar as questões estéticas e sociais.

Mais recentemente, nos anos 60 do século XX, passou-se dos parques lineares do século XIX para os corredores verdes e ecológicos de proteção da biodiversidade e dos ecossistemas, com relevo para os aspetos de capacidade de carga ecológica de estruturas espaciais que visavam conciliar a preservação ambiental e a expansão urbana e rural.

Hoje, o conceito de paisagem global corresponde a uma visão contemporânea de urbanismo pós-moderno, uma visão mais completa e complexa das relações cidade-campo, muito para lá dos parques e jardins da cidade industrial.

Nesse sistema compreensivo e orgânico de vasos comunicantes, o plano verde é um instrumento essencial na conceção dos espaços exteriores da cidade cuja autonomia do desenho é exigida pela retaguarda biofísica e cultural que lhe é própria e pela prática das artes que desde há muito servem a construção da paisagem viva (Telles, 2003).

Assim será, se, por via do planeamento biofísico e da arquitetura paisagista, soubermos tirar partido da topografia e morfologia do espaço e adequarmos o projeto da cidade à comunidade local.

 

Interações fortuitas e descobertas acidentais

A intensidade do urbanismo pós-moderno decorre diretamente da sua elevada conectividade e interatividade. Quando a interdependência for máxima entre todas as comunidades inteligentes, surgirão as interações fortuitas imprevistas e outras tantas descobertas acidentais surpreendentes.

Estamos a falar de propriedades emergentes em resultado de um universo de fusão entre a realidade material e imaterial, por exemplo:

– A hipervelocidade tornará o tempo quase irreal e a nossa vida, por vezes, quase surreal, onde o que parece não é;

– O hipertexto irá levar-nos à beira do abismo, num estado de ansiedade quase permanente e com dificuldade em comunicar;
– Precisaremos de suspeitar para conhecer, ou seja, vamos ter de reinventar o princípio cartesiano da dúvida metódica ou sistemática;

– As nossas faculdades estarão a transitar para fora do habitáculo biológico, ou seja, o corpo humano instala-se em dispositivos tecnológicos transumanos e pós-humanos;

– Iremos precisar de fazer treino específico para lidar com as interações fortuitas, ou seja, precisamos de desenvolver capacidades especiais para entender as relações entre incidentes imprevistos e descobertas acidentais;

– Precisaremos de atenção especial com o risco e a vigilância sistémicos, ou seja, em qualquer momento podemos ser cúmplices das ocorrências mais diversas e, por isso, não devemos abusar da sorte do passageiro clandestino;

– A abundância de informação nas redes sociais debilitará a nossa atenção, ou seja, cairemos num turbilhão de informação cuja finalidade última é induzir a nossa distração/manipulação;

– A nossa privacidade estará constantemente em causa, ou seja, deveremos exigir um quadro regulatório muito exigente que nos proteja do carácter imersivo, intrusivo e invasivo das tecnologias de informação e comunicação.

 

Notas Finais

A cidade tipológica do mundo urbano-industrial é dominada pelas grandes densidades urbanísticas, cuja massa e volumetria se sobrepõem à morfologia e aos valores culturais do território.

Esta cidade artificializada faz muitas vítimas à sua passagem, desde logo, as camadas sociais mais desfavorecidas que são atiradas para os subúrbios inóspitos e agressivos, em seguida, os ecossistemas naturais, cada vez mais poluídos, fragmentados e degradados e, por último, os centros históricos e os seus pequenos núcleos habitacionais, filhos bastardos de heranças desencontradas e políticas públicas ausentes, onde apenas ficam alguns serviços públicos e os elementos monumentais mais significativos.

Estas cidades urbano-industriais alargam as suas áreas de influência, tornam-se verticais, vão penetrando sucessivamente o território em anéis sucessivos que se estendem do suburbano e periurbano até ao rural de proximidade e ao rural remoto.

Numa estratégia de restauração da conexão cidade-campo é essencial uma nova arquitetura biofísica e paisagística, na qual as infraestruturas ecológicas, os corredores verdes e os serviços de ecossistema desempenham um papel fundamental.

Estes corredores verdes (CV) e, por maioria de razão, as redes de corredores verdes (RCV) desempenham importantes funções:

– Em primeiro lugar, funções ecológicas: manutenção da biodiversidade, espaços naturais e habitats, ligações entre habitats para a circulação de espécies, materiais e energia, filtro natural à poluição das águas e atmosfera, fixação de poeiras, proteção dos ventos e regularização de brisas, regularização das amplitudes térmicas e humidade atmosférica, circulação da água pluvial e infiltração;

– Em segundo lugar, funções sociais e económicas: espaços para recreio e lazer, abastecimento alimentar em produtos frescos, melhoria da qualidade ambiental, preservação do património histórico-cultural, valorização da qualidade estética das paisagens e controlo dos fatores de risco.

E, assim, nesta multifuncionalidade, se cumpre o novo urbanismo da cidade do futuro.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático aposentado da Universidade do Algarve

 

 



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