Reflexões sobre o grande projeto Arade

Fica aqui lançado o desafio de um grande projeto motivado por uma uma visão holística do rio Arade

Performance de teatro no parque PORT (Public Organised Recreation Territory), em Chelsea, Massachusetts, nas margens do Rio Charles – Autor do projeto e da foto: Landing Studio

Passaram dezasseis anos desde primeiro seminário Granturismo e estamos de novo reunidos em torno da bacia do Arade, agora como Grémio, para continuar uma discussão que nos interessa a todos: o Arade.

Hoje, para além da crise sanitária e da possibilidade de uma nova crise financeira, discute-se o pacto verde da União Europeia (UE) e a possibilidade de juntar profissionais e artistas em torno de um novo espírito renovador, que a presidente Ursula von der Leyen apelidou de “Nova Bauhaus”.

Num momento crucial para o Algarve, e na expectativa de novo investimento estratégico em áreas de intervenção vitais para o futuro, o Grémio criou uma equipa de trabalho, liderada por três arquitetos, a Ivone Gonçalves, a Marisa Baptista e o Ricardo Camacho, que conta com o apoio de um grupo mais alargado de profissionais algarvios, para a apresentação de uma “proposta concreta e viável” para o futuro do rio Arade.

Um plano de ação focado no combate à depauperação da vida nas cidades, vilas e aldeias da região e na eficiente utilização dos recursos existentes. Este desafio gerou a primeira comunicação pública do grupo:

Começamos por agradecer aos alunos, docentes e colegas, do Algarve, mas também de diferentes partes do país e do estrangeiro, que estiveram envolvidos na preparação de simpósios, palestras e workshops realizados em diferentes pontos da bacia hidrográfica do rio Arade desde 2005.

Agradecer também os esforços de autoridades locais e grupos de cidadãos, que, nos últimos meses, colocaram o rio Arade de novo na agenda dos municípios e da região.

O rio Arade compreende, ao longo da sua extensão, desde a serra do Malhão à barra de Portimão, a diversidade que caracteriza o Algarve da serra ao mar, assim como todos os temas centrais ao seu desenvolvimento, como a gestão dos recursos hídricos, a produção agrícola e florestal, a urbanização e turistificação, e mobilidade social.

A importância do Arade enquanto recurso fundamental do território algarvio está expressa no pacto governamental de Recuperação e Resiliência (PRR), que atribui ao sistema de albufeiras Arade-Funcho prioridade.

O recente contributo para a participação pública na elaboração do PRR pela Comunidade Intermunicipal do Algarve apela à criação do Programa “Cluster do Mar do Algarve” com base num estudo da Universidade do Algarve que prioriza, como estruturante para a região, o porto de cruzeiros de Portimão e o desassoreamento do rio até Silves.

Alguns dos movimentos de cidadãos, muito ativos nas redes sociais, manifestam oposição a estes projetos por entender que o seu impacto e as suas motivações são contrários à agenda ambiental do pacto verde da UE.

Marginal a esta discussão maior, têm surgido outros temas como a reabilitação do antigo pavilhão da lota, em Portimão, e decadência do retalho e restauração na baixa ribeirinha, o desenvolvimento urbano da mata da Rocha, a requalificação da praia da Angrinha, em Ferragudo, o Palácio de Congressos do Arade, no Parchal, a eletrificação da ferrovia e as sucessivas terraplanagens para novos loteamentos em pontos notáveis da margem esquerda, do convento do Praxel à torre da Lapa.

A primeira iniciativa que este Grémio organizou, à altura como Granturismo, partiu da constatação de que o Arade, que transportou e encenou todos os desenvolvimentos do mundo moderno – industrialização, comboio, construção de pontes, barcos a motor, turismo, torneios desportivos, cinema e eventualmente comércio -, está hoje ameaçado pelos fenómenos que outrora foram motivos de sucesso e desenvolvimento das comunidades ribeirinhas.

Esta foi uma primeira impressão, sem factos concretos, mas recolhemos na altura alguns dos dados compilados pela Agência do Arade que o comprovam:

(a) a invasão do automóvel (20.000 carros por dia no pico) transformou a única conexão pedonal entre margens na Foz do Arade, a “ponte velha”, numa rodovia urbana barulhenta e congestionada;

(b) os fluxos turísticos (80% dos quais oriundos da Europa), impulsionados pelas viagens aéreas de baixo custo e pelo setor imobiliário, tiveram um impacto nas margens do rio que continua por estimar e inter-relacionar, e que provocou alterações irreversíveis não só na propriedade e uso do solo, mas também nas expectativas e agenda de decisões maiores e menores, como por exemplo a introdução de restaurantes fast-food nas margens;

(c) o impacto da revolução digital na oferta cultural e o impacto das grandes superfícies comerciais na degradação do comércio tradicional, que, em Portimão e na baixa de Silves, levou ao encerramento de uma grande maioria das lojas.

Contudo, o conhecimento que hoje, assim como há dezasseis anos, tínhamos destes três fenómenos não foi determinante para evitar a decadência gradual das margens do Arade, assim como o encanto original/natural que atraiu os aclamados milhões de visitantes para banhos e sardinhadas.

Nestes últimos anos, um grande número de tentativas de resposta concreta expõe de forma mais óbvia o diagnóstico inicial: passadiços e passeios pedonais ou apenas encontros de moradores, ciclovias, wi-fi gratuito, feiras de velharias, mercados de produtores, o embelezamento urbanístico da “Ribeirinha”, o repuxo da ponte do comboio, as três rotundas do Parchal e o comércio de armazém, a vontade de abrir novas avenidas, como a demolição do Bazar Miriamis sugere, para ligar o Dique ao Jardim 1º de Dezembro, o regresso dos grandes eventos motorizados e do festival da sardinha, o terminal de navios de cruzeiro, os ambiciosos projetos de reestruturação do uso do solo lançados por fundos privados, um número crescente de stands que promovem prestigiados passeios de barco a Benagil, as autocaravanas e assim por diante.

No entanto, todas estas tentativas e programação respondem, na verdade, a um diagnóstico incompleto. O esforço dos últimos dezasseis anos para preservar a atratividade do rio não esteve à altura dos desafios que se colocavam.

De certa forma, a intermitência e disparidade de intervenções não reforçou a coesão territorial, pelo contrário, intensificou as suas clivagens, sectorizando-o e criando fronteiras ao invés da fluidez própria de um rio.

O que está em causa é a refundação de novos modos de vida e a adaptação de uma agenda global sedimentada em novos valores e tecnologias, muito diferentes das que dominaram a modernização dos últimos cem anos.

É neste contexto que o Arade e as suas margens enfrentam hoje o desafio de continuar uma missão de liderança e espírito de mudança, respondendo às expectativas de um século que se define pela obrigação de corrigir os excessos do anterior.

Uma tarefa que se antecipa enorme, mas que está de acordo com a tradição histórica da bacia do Arade, tal como se expressou ao longo do século passado: preceder, antecipar e liderar as grandes mudanças no modo de vida, na oferta cultural e de lazer, e finalmente a revolucionar padrões de consumo.

Depois de um ano de 2020 em que discutimos intensamente os temas do Algarve, incluindo o Arade, este Grémio de arquitetos compilou um manifesto de intenções @info.m2020 onde não se pretende, para já, oferecer uma solução, mas apresentar conteúdos que a possam informar em breve.

Iniciámos, em 2020, um repto à participação e responsabilização de todos os algarvios que se tem manifestado na agenda e conteúdos divulgados pelos membros nas redes sociais e na imprensa regional.

Com uma agenda maior, que vai muito além do que podemos fazer, está no centro da iniciativa do Grémio: uma estratégia colaborativa na abordagem à bacia do Arade que fuja ao conformismo de situações de legado e que, em conjunto com as associações e autoridades municipais, possa co-construir um ‘Arade’ de que todos se orgulharão e que desperte maior interesse fora da região.

Todos nós temos o nosso lugar nesta empreitada e o do Grémio é inspirar a decisão.

A bacia do Arade faz parte do nosso património comum e é um marco territorial no Algarve. Uma herança de enorme relevância, num tempo que já se acredita ser de mudança. Mudança, na agenda ambiental e social, mas também política e económica, num momento que se entende ser o de fim de um ciclo e início de uma nova Europa, do pacto verde e do plano de recuperação pós-pandemia.

A resiliência, inovação, consciência ambiental e capacidade de resposta social anunciadas pelo PRR exigem novos projetos com capacidade de mudar, em especial o âmbito regional de competências e poder de decisão que permanece ambíguo e ambivalente.

O Algarve tem de assumir maior objetividade territorial entre a unidade de paisagem urbana e natural de modo a fortalecer a sua identidade e competitividade.

 

Autor: O Grémio é um coletivo que organiza jornadas criativas em residência, bem como investiga o impacto dos processos de edificação e demolição no âmbito da ecologia regional.
Com projetos independentes, os residentes olham para as dinâmicas social e de trabalho daqueles que constroem, as cadeias de fornecimento e produção local de materiais e emissões de carbono durante e após a construção.
Com jornadas em curso no Algarve, o Grémio alargou, no início deste ano, o programa de residências a outras regiões do país, com curadoria do arquiteto Pedro Duarte Bento, focado na edificação dispersa e floresta.
A primeira, “jornadas da vivenda”, será apresentada em Leiria já no final de Setembro e resulta de parceria com o coletivo a9)))), da Célula & Membrana associação artística e cultural de Leiria, à procura de respostas para: Que habitação e tipologia? Onde construir e como? Que materiais e técnicas de construção utilizar?

 



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