O estigma da desigualdade intergeracional

As consequências sociais da pandemia estão aí e deixam-nos um aviso sério, há cada vez mais famílias à beira do limiar crítico de pobreza

Se a década que agora começa, e não começou nada bem com a covid-19, for tão triste e melancólica como as duas primeiras décadas deste século, estarão criadas as condições para uma tragédia da desigualdade profunda, ou seja, para assistirmos ao agravamento do estigma da desigualdade intergeracional.

A demografia estará contra nós com o envelhecimento acelerado da população, as alterações climáticas estarão contra nós, os efeitos da pandemia estão ainda por apurar, a economia precisa de recuperar e não sabemos se continuará a apresentar taxas de crescimento médio muito baixas ao longo da década, o limiar de pobreza será atingido por muitos portugueses no desemprego de longa duração, na inatividade, na pré-reforma e na reforma.

Vejamos como esta tragédia e este estigma se podem manifestar:

 

1. Os impactos das alterações climáticas alteram o nosso conceito de bem-estar

As alterações climáticas, pelos seus efeitos profundos, obrigam-nos a rever o nosso conceito habitual de bem-estar. Acresce que, devido à grande inércia das alterações climáticas, os problemas só terão uma resolução no médio e longo prazo.

Até lá, trata-se de fazer remediação e mitigação de um grave problema de saúde pública que afeta bastante o estrato de população mais envelhecido. Vamos ouvir falar de mobilidade e de refugiados por motivos climáticos. É a primeira grande desigualdade.

 

2. Os efeitos da pandemia afetam as relações de sociabilidade habituais

Os efeitos pós-pandemia da covid-19 estão ainda por apurar e é muito provável que a circulação deste vírus se transforme em doença crónica de múltiplas mutações.

Se assim for, teremos não apenas de mudar as regras de etiqueta social como alterar as nossas relações de sociabilidade habituais. E nada será como dantes, com um impacto profundo sobre a população mais idosa, em especial, sobre o estado da sua saúde mental. É a segunda grande desigualdade.

 

3. A degradação habitacional acentua-se com as alterações climáticas

As alterações climáticas, em especial, o aquecimento global, mas, também, as suas ocorrências mais severas, terão um impacto muito forte sobre as condições de habitabilidade da população mais desfavorecida que vive geralmente em habitações pouco cuidadas e bairros degradados. É a terceira grande desigualdade.

 

4. A desqualificação socio-laboral acentua-se com a iliteracia digital

Os mercados de trabalho estão a evoluir muito rapidamente no sentido de uma progressiva desmaterialização de processos e procedimentos de trabalho e produção, em particular, os métodos de fabrico industrial da indústria mais convencional e padronizada.

Os trabalhadores mais velhos destes setores industriais serão os primeiros a serem atingidos pelo processo de transformação digital. A desqualificação laboral acentua-se com a iliteracia digital e uma nova desigualdade tem lugar.

 

5. O desemprego de longa duração e a inatividade estendem-se no tempo

Estes trabalhadores devido à sua idade e baixas qualificações entram na fileira do desempregado de longa duração, das formações profissionais avulsas e, mesmo, na inatividade profissional, já para não referir as baixas por doença e os problemas agravados de natureza familiar e saúde mental.

Muitos deles não terão condições técnico-profissionais para enfrentar o ciclo das grandes transições, incerto e inseguro. E uma nova desigualdade tem lugar.

 

6. Os salários baixos e médios estão próximos e com tendência para estagnar

Estes mesmos trabalhadores, no último segmento da sua vida profissional, estão no patamar mais baixo da escala salarial, porque nos últimos vinte anos do século XXI a economia portuguesa cresceu a uma taxa tão baixa que não permitiu corrigir a desigualdade na distribuição de rendimentos do trabalho. E assim se alimenta mais uma desigualdade na sociedade portuguesa.

 

7. As expetativas quanto às pensões de reforma não são muito brilhantes

A tragédia da desigualdade profunda prossegue para lá da vida ativa, quando os trabalhadores entram no período da reforma e recebem a sua parca pensão de rendimentos.

Salários baixos significam pensões ainda mais baixas e, assim, estamos cada mais próximos do limiar de pobreza e da ajuda misericordiosa. A desigualdade aprofunda-se até à pobreza e o isolamento familiar e social.

 

8. O acesso a cuidados médicos diferenciados não está assegurado para todos

Basta olhar para 2/3 do território nacional e não encontramos lá cuidados médicos diferenciados. Ou seja, a população mais envelhecida que vive no rural remoto e nas pequenas localidades do interior acumula morbilidades de todo o tipo e doenças crónicas que se eternizam, no preciso momento em que os seus rendimentos estão mais depauperados.

Em caso de urgência, o táxi pode substituir a ambulância, mas tudo pode acontecer durante uma deslocação de risco. É, mais uma vez, a tragédia da desigualdade profunda a manifestar-se.

 

9. Os problemas de mobilidade acentuam o abandono e isolamento familiares

A covid-19 acentuou seriamente um problema de longa data, um círculo vicioso em pleno funcionamento, a saber, o encerramento de alguns serviços públicos, de serviços privados bancários, seguros, médicos e transporte de passageiros e, sobretudo, a quebra dos laços sociais de proximidade, isolaram ainda mais as pequenas povoações e localidades o que conduziu ao crescente abandono e o isolamento da população mais idosa, doente e com graves problemas de mobilidade, já para não falar na ausência de relações familiares e nas questões de segurança pessoal. É mais uma desigualdade profunda em plena laboração.

 

10. O acesso aos meios de comunicação e informação não está assegurado

A doença crónica da pessoa idosa e as comorbilidades associadas impedem, na prática, o acesso aos meios de informação e comunicação. Uma audição deficiente, uma visão problemática, uma saúde mental precária, são razões bastantes para isolar uma pessoa do mundo que a envolve. Veja-se, por exemplo, a crise de leitores da imprensa local e regional.

E o mais grave é que não se vislumbra nenhuma estratégia preventiva de abordar os problemas da sociedade sénior e o envelhecimento ativo com a responsabilidade coletiva e o cuidado que merecem. Eis a suprema tragédia da desigualdade profunda.

 

Notas Finais

As desigualdades enunciadas, na sua extrema complexidade, não serão resolvidas se forem abordadas isoladamente, tanto mais quanto a pobreza, a precariedade e a doença são problemas transgeracionais, isto é, juntam famílias de gerações diferentes com dificuldades semelhantes.

Acresce que as grandes transições já em curso para esta década podem não somente agravar estas desigualdades, como, também, desencadear efeitos assimétricos de ricochete que irão colocar muita pressão sobre os mercados de trabalho, os níveis de remuneração mínimos e médios de salários e pensões, as condições de habitabilidade, a oferta e a qualidade dos serviços públicos e sociais, a qualidade dos programas de envelhecimento ativo, dos cuidados primários e continuados de saúde, a assistência à família e a qualidade dos serviços ambulatórios de proximidade, o acesso à informação e comunicação, por exemplo, a imprensa local, que interessa em particular aos mais idosos.

As consequências sociais da pandemia estão aí e deixam-nos um aviso sério, há cada vez mais famílias à beira do limiar crítico de pobreza. E não podemos tolerar tal fatalidade.

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 



Comentários

pub