A crise dos Bens Públicos Globais

Os bens públicos globais, na sua extrema fragilidade, são a expressão mais autêntica dessa herança comum da humanidade

A cooperação científica internacional que tornou possível a fabricação de uma vacina em tempo record e a realização de uma viagem extraordinária até ao planeta Marte é de tal forma inspiradora e prometedora que me interrogo sobre as razões pelas quais investimos tão pouco em humanidade, cooperação e solidariedade, não apenas em relação aos humanos, nossos irmãos, mas, igualmente, em relação à nossa mãe-natureza.

Os bens públicos globais (BPG), pela sua escala e natureza, fazem parte da herança comum da humanidade. Em princípio, não são bens competitivos, exclusivos, divisíveis ou apropriáveis por alguém.

São, portanto, bens comuns, cuja provisão e supervisão são proporcionados pela cooperação internacional e as organizações multilaterais, muitas vezes apoiadas em organizações não-governamentais (ONG).

Porém, como sabemos, a realidade pode ser muito mais cruel e os exemplos não faltam. Nos últimos quatro anos, a cooperação internacional multilateral sofreu um rude golpe, uma vez que foi o alvo preferido das políticas de contenção e isolamento dos maiores países, os Estados Unidos em primeiro lugar.

Este é o pretexto e o contexto para uma breve reflexão sobre 10 bens públicos globais que, no seu conjunto, são a expressão política de uma ética global do cuidado que deveria guiar permanentemente as nossas ações.

1. A saúde pública global, a esperança da vacinação

Para combater a pandemia foi criada a COVAX, um programa coordenado pela OMS e pela Aliança Global para as Vacinas (GAVI), da qual José Manuel Durão Barroso é atualmente presidente.

Devido à Covid-19, a GAVI, a OMS e outros parceiros criaram a iniciativa COVAX para angariar fundos para adquirir as vacinas e distribuí-las pelos países mais pobres do mundo.

Na última cimeira dos líderes do G7, ficou acordado estes países duplicarem o apoio à vacinação contra a Covid-19 no mundo, através do programa COVAX. A distribuição, porém, é de tal modo desigual, que podemos falar de uma verdadeira geopolítica da vacinação.

E este é o risco maior para a saúde pública global.

2. O combate contra as alterações climáticas, a origem de todos os males

Esta é a ferida mais profunda e a causa de quase todos os males. As alterações climáticas têm origem no nosso modelo de crescimento económico e nos nossos padrões de comportamento, sobretudo em matéria de consumo de recursos naturais, sendo os problemas de saúde pública um efeito externo negativo desses padrões de comportamento.

Em consequência, o acento tónico, hoje, é colocado na restauração da biodiversidade, na descarbonização da economia e bio economia circular, que são apenas alguns dos programas para a próxima década.

O risco aqui é um certo negacionismo e uma reduzida efetividade nesta matéria.

3. A difusão do conhecimento científico, o bem mais precioso

A montante dos problemas, só a educação e o conhecimento nos podem colocar em pé de igualdade. Neste particular, não podemos confundir os impactos de uma pandemia que mata, com os efeitos habituais de uma patente num processo industrial comum.

Nunca as patentes foram tão importantes, mas o lado humanitário não pode, nem deve ser relegado para plano secundário, em particular, em pleno estado de emergência.

Mais uma vez, a cooperação e a solidariedade internacionais são aqui essenciais, pelo que podemos até desafiar as próprias farmacêuticas a dar um exemplo de solidariedade e filantropia nesta matéria e circunstância.

O risco aqui é um uso abusivo e desproporcionado da propriedade industrial.

4. O acesso às comunicações em rede, pôr a humanidade em linha

A pandemia da Covid-19 mostrou à evidência o papel nuclear das comunicações eletrónicas e digitais de alto débito e velocidade. É certo, a aceleração da transformação digital criou, uma vez mais, novas desigualdades de acesso, tal como aconteceu com a vacinação e o conhecimento científico.

Quer dizer, o acesso às comunicações depende de investimentos muito avultados em infraestruturas de cobertura digital, redes de distribuição, regulação da privacidade e segurança. Veja-se o exemplo da rede 5G.

O risco aqui é o cibercrime e a ausência de cibersegurança, mas, também, uma eventual nacionalização da internet.

5. A promoção da paz internacional, proteger os grupos mais vulneráveis

Basta pensarmos um pouco nos imensos conflitos regionais que estão agora em curso e facilmente encontraremos uma série de estados falhados que estão na origem e explicam, por exemplo, o atual fluxo de refugiados do Médio Oriente e Norte de África para a Europa por via do mar Mediterrânico.

Mais uma vez, por detrás desses conflitos e estados falhados, há uma geopolítica dos recursos naturais, mas, também, o tráfico de armamento e pessoas.

Isto é, a paz e a cooperação internacionais são um campo privilegiado onde prolifera o realismo e o cinismo nas relações entre Estados, sempre em prejuízo dos grupos mais vulneráveis de população.

O risco aqui é deixar que se banalize esta tragédia da desigualdade profunda.

6. O comércio livre e justo, a criação e distribuição de riqueza

A pandemia da Covid-19 mostra, também, que o fecho ou condicionamento das fronteiras e a consequente redução do comércio livre criam efeitos assimétricos e impactos muito variados sobre as diversas economias em desenvolvimento que não têm almofadas orçamentais para proteger os seus cidadãos mais atingidos, em especial os mais pobres.

Mais uma vez, esta desigualdade entre países prejudica extraordinariamente os esforços já empreendidos e fá-los recuar no tempo mais uma vez.

O risco aqui é o regresso à caridade/solidariedade global num momento crítico da cooperação internacional.

7. A promoção da estabilidade financeira, fator de confiança entre as nações

A pandemia da Covid-19 tem um impacto devastador sobre a criação de riqueza e, portanto, sobre os défices e as dívidas públicas, o que prejudicará irremediavelmente o ritmo da recuperação económica e social se, adicionalmente, subirem muito os juros no mercado internacional de capitais.

Mais uma vez, só a cooperação multilateral, através do FMI e do Banco Mundial, pode aliviar esse pesado ónus de dívida e promover a estabilidade financeira mínima para relançar as economias.

O risco aqui é de natureza sistémica e pode bloquear o sistema bancário e financeiro global.

8. A proteção dos oceanos, a proteção da joia da coroa

Os oceanos são uma verdadeira joia da coroa, um órgão vital da nossa terra-mãe natureza que as alterações climáticas, por nosso intermédio, teimam em fragilizar de forma reiterada.

A captura do carbono, o aquecimento das águas e a sua acidificação, a subida do nível das águas costeiras, as tempestades meteorológicas, têm os oceanos como cenário e agente-principal.

O risco é irreversível e iminente a curto prazo, a inversão de tendência só acontecerá, se acontecer, a longo prazo.

O risco aqui é que seja tarde demais no que diz respeito à subida das temperaturas neste século.

9. A ajuda multilateral à cooperação e desenvolvimento, uma ética do cuidado

A pandemia da Covid-19 acentuou uma tendência que já vinha de trás, ou seja, as diversas Agências das Nações Unidas estão impotentes e à beira do colapso no que diz respeito à resposta de emergência nos países e regiões mais críticos.

A doença, o desemprego, a fome e o terrorismo no Médio Oriente e em África não são de hoje e não se combatem com uma ajuda de emergência despejada para cima dos problemas. Uma ética do cuidado é necessária, mas o problema é eminentemente político.

O risco aqui é a instrumentalização política dos países mais desprotegidos e vulneráveis para alguns jogos de poder.

10. A luta contra o terrorismo, em jogo a paz e a segurança internacionais

As feridas abertas e agravadas com a pandemia da Covid-19 facilitaram a penetração do terrorismo em países e estados falhados. O terrorismo está, também, mais sofisticado com a transformação digital, como bem o ilustra o cibercrime e as guerras informáticas.

Ou seja, o terrorismo encontrou terreno aberto nos países mais pobres e vulneráveis, mas, também, nos países mais ricos e desenvolvidos.

Nesta exata medida, a luta contra o terrorismo faz-se por cima das fronteiras nacionais e reclama uma crescente cooperação internacional para o controlar e combater.

O risco aqui é a mistura entre negócios e segurança, acompanhados de perto pela cumplicidade e a corrupção.

 

Notas Finais

A cooperação internacional e a geopolítica das áreas de influência são as duas faces da mesma moeda. E os bens públicos globais têm quase todos esta dupla face de Janus.

Basta pensar na corrida ao espaço ou na geopolítica das vacinas e da vacinação, nas notícias falsas em matéria de alterações climáticas ou na venda de armas a grupos terroristas.

Mas, acima de tudo, revelam uma pesada consequência, a saber, uma desigualdade crescente sobre países, regiões e populações inteiras que ficam à mercê da emergência internacional, os quais, por sua vez, devolvem esse seu infortúnio, sob múltiplas formas, sobre os países mais desenvolvidos.

Vivemos, pois, uma verdadeira quadratura do círculo. Há só uma terra, uma só saúde e uma só economia.

Os bens públicos globais, na sua extrema fragilidade, são a expressão mais autêntica dessa herança comum da humanidade.

 

 

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