Uma só terra, uma só saúde

Um só mundo, uma só terra, uma só saúde. Por isso, se não cuidarmos da pandemia nos países pobres, dificilmente teremos boa saúde pública nos países ricos

Vivemos um tempo de uma virulência inusitada que mostra bem, em toda a sua extensão, como é frágil a espécie humana e quão poderoso é um ser invisível gerado pela ligeireza e leviandade dos nossos comportamentos.

E não vale a pena nacionalizar o risco global e a pandemia por maior que seja a tentação. No mundo há uma só humanidade e uma só saúde.

A ecologia e a economia ajudam-nos a perceber o que se passa, senão vejamos:

– As alterações climáticas desencadeiam as migrações de pessoas, plantas e animais,

– As desigualdades sociais geram uma demografia assimétrica e fluxos migratórios,

– A economia alimenta-se do comércio de animais comuns vivos e animais selvagens,

– As fragilidades dos sistemas de saneamento e abastecimento de água são enormes,

– A pressão sobre os recursos escassos mais sensíveis é demolidora,

– O agronegócio alimenta-se da agropecuária quimicamente intensiva,

– O agronegócio alimenta-se da agricultura geneticamente modificada,

– A urbanização intensiva ocupa desordenadamente os solos com aptidão agrícola,

– As grandes metrópoles e o universo suburbano geram pobreza e miséria em seu redor,

– A mobilidade e turistificação excessivas geram gentrificação urbana e desigualdade,

– A crescente proximidade com os animais faz aumentar o número de mutações virais,

– O desequilíbrio entre presas e predadores aumenta as mutações de vírus e bactérias,

– As florestas fragmentadas desequilibram os ecossistemas e habitats e as cargas virais,

– Os mercados locais do mundo pobre e subdesenvolvido são um foco de zoonoses,

– As mutações dos microrganismos criam os seus próprios elementos patogénicos,

– O uso crescente de antimicrobianos na criação animal acabará por infetar os humanos.

A consequência de tudo isto está à vista de todos, ou seja, o número crescente de interfaces aumenta o risco de colisão e contágio potencial, muitas linhas vermelhas são ultrapassadas e os vírus e bactérias colidem com os humanos.

Como se pode observar, e a lista peca por defeito, os fatores que podem gerar uma espécie de cocktail viral estarão sempre à espreita de uma oportunidade.

Por isso, doravante, faz todo o sentido reconsiderar as relações entre mercados globais e mercados locais, tanto mais quanto as tecnologias digitais alteram profundamente a geografia das cadeias de valor do comércio global e da mobilidade em geral.

 

O campo analítico dos sistemas bioprodutivista e ecossistémico

Num plano mais analítico, o risco de colisão e contágio potencial pode ser observado nas relações entre economia e ecologia que aqui são transpostas para a lógica dos sistemas bioprodutivista e ecossistémico. Podemos antecipar, desde já, uma conclusão de ordem geral:

– A lógica bioprodutivista desemboca na globalização e mercantilização dos mercados agroalimentares por via da circulação de grandes massas de bens transacionáveis;

– A lógica ecossistémica é uma lógica de equilíbrio e compromisso entre os mercados globais e os mercados locais em que se atende e valoriza o pluralismo dos modos de fazer agricultura, de produzir alimentos, de salvaguardar a saúde dos ecossistemas, de proteger e valorizar os territórios mais desfavorecidos e de acautelar, nesta rede de relações, a saúde pública e o bem-estar das populações.

Porém, se tivermos em conta a relação desigual de poder entre estas duas lógicas, então não devemos ocultar o determinismo tecnológico imposto pelo bioprodutivismo.

Eis as suas principais características:

– Os processos de produção, de trabalho, de transformação e de distribuição são, cada vez mais, determinados pelo kit tecnológico;

– Os processos biofísicos e ecológicos são, igualmente, de cariz tecnológico e “resolvidos” por meio da modernização ecológica e por processos de mitigação, adaptação e compensação dos ecossistemas;

– O difusionismo tecnológico estandardizado é a força motriz do desenvolvimento agroindustrial, agroalimentar;

– A biotecnologia genética acelera a homogeneização das variedades usadas e, portanto, reduz a variedade dos produtos finais obtidos, com prejuízo da respetiva cadeia de valor;

– A redução da variabilidade genética reduz a diversidade agroecológica local e regional e diminui o campo de possibilidades dos agricultores tradicionais e da agricultura tradicional, cujo conhecimento é fundamental para a transição agroecológica;

– Os ciclos de inovação tecnológica estão “programados” para responder aos ciclos de vida dos produtos e à quebra continuada dos termos de troca, assim o impõe a lógica dos mercados;

– A lógica biotecnológica opera uma transferência de rendimento, dentro da fileira, de montante para jusante, que se traduz numa punção constante do valor criado pela atividade agrícola, mas a distribuição de rendimento não é problema seu;

– As relações de poder bioprodutivista adotam uma lógica puramente microeconómica e empresarial realçando, nesse contexto, o fundamento e o valor acrescentado da opção tecnológica tomada;

– O modelo biotecnológico identifica-se com o progresso e é fonte de crescimento económico, dois valores determinísticos que não se discutem, uma vez que os riscos globais fazem parte e estão contidos no próprio campo probabilístico da ciência biotecnológica;

– O modelo biotecnológico é o único capaz de responder ao determinismo e às exigências dos mercados globais e à descida continuada dos termos de troca mundiais, por via de uma combinação ótima de tecnologia, escala, produtividade e competitividade.

Perante estes vários níveis de sobredeterminação impostos pelos mercados globais e pelos diferentes kits tecnológicos, podemos agora retirar algumas ilações de ordem geral que apontam, também, para uma maior consideração e importância da lógica ecossistémica e agroecológica, tendo em vista guardar uma relação de equilíbrio mais sólida e duradoura entre os sistemas agrários, a biodiversidade e a governança global:

– A lógica bioprodutivista tem uma micro produtividade elevada, mas pode gerar um risco sistémico também elevado; a lógica agroecossistémica tem uma micro produtividade mais baixa (a curto prazo) mas uma produtividade ecossistémica mais alta e, portanto, uma biodiversidade mais dinâmica e consistente;

– A lógica bioprodutivista precisa da escala dos mercados globais, a lógica agroecossistémica assenta, por definição, em meso escalas, logo, em mercados mais locais e regionais que exigem uma maior coordenação e governação multiníveis;

– A lógica bioprodutivista socializa as suas externalidades negativas para dentro dos orçamentos nacionais, o contribuinte que pague os efeitos sobre a biodiversidade, enquanto a lógica agroecossistémica apresenta um custo de transação elevado envolvido nas políticas de ambiente e agroecológicas, em particular, o desenho de sistemas agrários que conduzam à produção conjunta de bens privados e bens públicos onde se incluem os pagamentos agro-silvo-ambientais pelos serviços prestados;

– A qualidade do fator político-institucional, onde se conta o poder do lobbying corporativo, é decisiva: estão em jogo fatores cruciais como os regimes de propriedade, os estímulos a novas formas de ação coletiva, a modernização da administração agroecológica e novas formas de extensão rural, os incentivos ao rejuvenescimento do empresariado agrícola, a natureza e a orientação técnico-científica da investigação nas áreas da biotecnologia e da agroecologia; quer dizer, as políticas domésticas têm uma importância decisiva na forma como se estabelecem os compromissos entre biotecnologia produtivista e biotecnologia ecossistémica.

 

Notas Finais

Em síntese, a relação entre mercados globais e mercados locais é decisiva para perceber o tráfico de mercadorias, pessoas e animais, mas, também, de vírus e bactérias.

Quer dizer, se não houver um equilíbrio bem proporcionado entre mercados globais e locais e entre países ricos e países pobres, ou seja, sem uma institucionalização forte que imponha regimes de equidade e reciprocidade no comércio internacional e proporcione algumas externalidades positivas fundamentais em matéria de clima e ambiente, conservação dos solos e biodiversidade, pobreza e ocupação de territórios desfavorecidos, estaremos, progressivamente, a consumar a separação entre reserva estratégica alimentar, a base de biodiversidade correspondente e os territórios que as acolhem.

Não surpreenderá, então, que assistamos a uma concentração do poder de controlo sobre os recursos naturais, ao alargamento das escalas de produção, à disseminação das monoculturas, à monotonia biofísica e ao empobrecimento da diversidade social dos territórios.

Em mercados abertos, globalizados, injustos e mal regulados, ao lado do tráfico clandestino de pessoas, animais e material genético, assistiremos, então, ao tráfico de muitos outros passageiros furtivos, onde se incluem os vírus e bactérias, mas, também, a biopirataria e os vírus informáticos.

É aqui que nos encontramos hoje. Um só mundo, uma só terra, uma só saúde. Por isso, se não cuidarmos da pandemia nos países pobres, dificilmente teremos boa saúde pública nos países ricos.

 

 

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