Sobre o Estatuto Jurídico dos Animais

«Independentemente de consagrar direitos subjetivos dos animais, o decisivo é que se consagrem deveres dos humanos que reflexamente protejam aqueles»

1. Não creio que os animais sejam coisas. Sejam lá as coisas o que forem, para além do que o Código Civil português (C.Civ. – art. 202º) define: “o que possa ser objeto de relações jurídicas”.

A serem coisas, serão pelo menos coisas diferentes das outras, coisas com vida, animadas. Contudo, parece-me pobre defini-los como coisas dotadas de sensibilidade.

Não penso, também, que os animais sejam pessoas. Não por opção ideológica, mas porque os não vejo titulares de direitos, a par das pessoas físicas humanas e das pessoas meramente jurídicas coletivas, como as associações e as sociedades. Não me satisfaz, pois, também, a sua caracterização como pessoas não humanas.

Desenha-se, assim, a fuga para o que os cientistas chamam ao que não enquadra: um tertium genus, algo que não pertence a nenhuma das categorias conhecidas. Será assim?

Sejam coisas ou pessoas, importa determinar se os animais merecem proteção não apenas como parte do ecossistema, mas enquanto seres individualmente considerados.

2. A consideração da existência de direitos subjetivos na titularidade de animais parece esbarrar com várias objeções, algumas delas facilmente superáveis.

Em primeiro lugar, ocorre objetar que os animais nunca poderiam exercer os direitos que lhes fossem reconhecidos. É certo, mas tal é comum aos humanos incapazes, como os menores, que também não podem exercer pessoal e livremente os seus direitos.

Nada mais se exigiria, então, do que alguns seres humanos – os seus proprietários, as associações zoófilas que a Lei de Proteção dos Animais (LPA) já legitima para requerer medidas que evitem a violação da lei – atuassem em representação legal dos animais no exercício desses, então seus, direitos.

Acrescentar-se-á que a condição não-humana dos animais não permite que se possa conceber uma “vontade (do) animal” que orientasse o exercício de direitos.

Isto distingui-los-ia de outras pessoas meramente jurídicas (não humanas), como as associações e as sociedades, que sempre formam a sua vontade através dos seus órgãos.

É realmente difícil conceber quem, legitimamente, possa formar a vontade jurígena de um animal. Identificar de que atos jurídicos ele seria capaz mesmo que representado. Poderia contratar? Transacionar em juízo?

Interpretar a “vontade” de um animal, se os bens tuteláveis forem apenas a sua vida, a sua integridade física e a sua dignidade, não é especialmente difícil.

Conciliá-la com os “interesses” dos humanos (à alimentação, ao desporto, ao espetáculo) é tarefa que, no atual ordenamento jurídico português, suscita um problema imediato: que animais são protegidos, visto que não são todos?

Os animais são consumidos para alimentação dos humanos. Os animais são usados em espetáculos como as touradas, são caçados, são alvejados com armas no tiro aos pombos, por exemplo.

Já a proteção dos “animais de companhia” é muito acentuada e perfeitamente assimétrica da dos demais animais. Será, então, verdade que alguns animais são mais iguais do que os outros, como se diz na obra de Orwell?

3. A propriedade de animais está, hoje, muito condicionada por deveres de cuidado (cfr. art. 1305º-A C.Civil). O proprietário de um animal pode usá-lo, dele fruir e dispor, desde que dele cuide. Pode até infligir-lhe dor, sofrimento ou morte, ou abandoná-lo, desde que tenha “motivo legítimo” (cfr. art. 1305º-A/3 C.Civil). Poderia o legislador civil ter ido mais longe em 2017? Talvez não.

No estádio atual de desenvolvimento civilizacional, pode proscrever-se a morte e o sofrimento gratuito infligidos por humanos a animais.

No entanto, a lei só condena o sofrimento dos animais quando “desnecessário” (art. 1º/1 LPA) ou sem “motivo legítimo” (art. 1305º-A/4 C.Civil), o que deixa antever exceções.

Estas correspondem a práticas ainda correntes, muitas delas já completamente inaceitáveis seja qual for a perspetiva em que se encarem os interesses dos animais, como as experiências laboratoriais.

Evoluir para a proibição total de infligir morte com sofrimento a um animal, de atentar contra a sua integridade física ou dignidade é um passo pequeno, quiçá próximo.

Considerar os animais não como coisas, mas como seres dotados de sensibilidade, como faz o Código Civil desde 2017, não contém nenhuma valoração jurídica, nada altera o seu estatuto: os animais continuam a ser objeto de relações jurídicas. Mas nós vivemos de símbolos e é simbolicamente valiosa esta mudança de nomen.

Personificar os animais não parece necessário à salvaguarda de uma existência condigna destes, nem compaginável às aceções e estatuto que lhes encontramos no ordenamento jurídico português hodierno.

A consagração de deveres para com os animais não exige que se lhes reconheçam direitos subjetivos. E o importante aqui é o estatuto, a vida, a integridade e a dignidade dos animais, não apenas como parte do ecossistema, mas individualmente considerados.

Considero que, independentemente de consagrar direitos subjetivos dos animais, o decisivo é que se consagrem deveres dos humanos que reflexamente protejam aqueles. E esta é missão insubstituível de todos nós.

 

Autor: Alberto de Sá e Mello é professor catedrático convidado no Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes (ISMAT – Portimão) e diretor do Curso de Direito do ISMAT

 

 

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