Comunidade Intermunicipal pode ser o agente-principal da coesão territorial

As tecnologias digitais serão um poderoso instrumento de governação territorial, mas elas terão de fazer prova de vida in situ e não apenas ex situ

Foto: Geoparque Algarvensis | Vasco Célio

Volto ao tema das comunidades intermunicipais (CIM) e ao seu papel de agente-principal do desenvolvimento local, intermunicipal e regional.

Num contexto de pós-pandemia e de grandes transições – climática, energética, digital, demográfica, migratória, laboral – precisamos de um centro de racionalidade que saiba olhar transversalmente para os territórios locais e regionais e seja capaz de administrar, de modo consistente e eficaz, os vários programas e medidas de política que aí vêm.

 

A oferta integrada e complementar de serviços comuns

No período pós-pandemia, nas nossas pequenas vilas e cidades, caminharemos, progressivamente, para uma oferta integrada e complementar de bens e serviços comuns que utilizará as melhores práticas tecnológicas e digitais, mas, também, comunitárias e institucionais, tendo em vista impedir a migração de pessoas, bens e serviços, de qualquer natureza, para as áreas litorais e emigração.

Como sabemos, estão aí o Programa de Recuperação e Resiliência da União Europeia e o próximo quadro comunitário de apoio, com meios financeiros substanciais. É preciso, pois, desde já, preparar as diversas economias locais e regionais e, as CIM em especial, para as estratégias de recuperação e desenvolvimento que são necessárias.

Agora que se discute a descentralização e a transferência de competências para os vários níveis de administração (regional, intermunicipal e municipal) importa saber em que níveis ou escalas vamos colocar a provisão de serviços comuns fundamentais, por exemplo:

– O planeamento dos transportes públicos intermunicipais e a sua interoperabilidade,

– O planeamento da mobilidade suave e a arquitetura do espaço público,

– O planeamento das medidas contra as alterações climáticas e a pegada ecológica,

– O planeamento do abastecimento local de alimentos e a agricultura comunitária,

– O planeamento dos cuidados continuados e serviços de apoio domiciliário,

– O planeamento dos serviços culturais, lazer e recreio e terapêuticos,

– O planeamento dos serviços de segurança e proteção aos grupos mais vulneráveis,

– O planeamento dos serviços administrativos, saúde pública, postais e bancários,

– O planeamento dos serviços de ensino e formação profissional para a transição digital,

– O planeamento de serviços técnicos para o estímulo ao rejuvenescimento empresarial.

Todos estes serviços podem ser objeto de uma gestão agrupada no plano intermunicipal e uma Comunidade Intermunicipal pode, ainda, desempenhar o papel de agente-principal do respetivo sistema produtivo local (SPL).

Ou seja, a CIM pode eleger o seu SPL como o objetivo estratégico do seu território. Não é uma tarefa fácil, mas é uma tarefa que vale a pena realizar.

Quando refiro as comunidades intermunicipais estou a pensar, em especial, na arte da composição dos territórios em rede e, nesta composição, o papel da economia digital no cruzamento e na convergência entre o mundo físico de entidades municipais e o mundo digital de plataformas colaborativas intermunicipais.

É bom não esquecer que vivemos ainda na chamada “logística dos territórios-zona”: a logística partidária, a logística eleitoral, a logística municipal, a logística administrativa, a logística setorial, a logística associativa, a logística sindical, a logística clientelar, a logística identitária, a logística publicitária e propagandística.

São todas “logísticas de fronteira” tendo em vista as várias formas de inclusão-exclusão, isto é, quase todas são concebidas para premiar a subordinação e punir a desobediência, todas são concebidas pelo poder vertical para reproduzir o território-zona.

Os poderes corporativos em redor destes territórios-zona guardam religiosamente os seus custos de transação, pois eles são uma fonte privilegiada de lucro e vantagem no sistema de poder em que vivemos. E as CIM, apesar da sua juventude, não fogem a esta regra.

 

As CIM e o seu papel de agente-principal

Se olharmos à nossa volta, a falta de mapeamento gravitacional de um território impede-nos de ver como funcionam no terreno as várias cadeias de valor, em especial, as mais pequenas.

Só conhecemos as redes centralizadas ou verticais, as fileiras com maior visibilidade, não conhecemos ou conhecemos mal as redes descentralizadas e distribuídas e, assim, perdemos uma boa parte dos efeitos arteriais e capilares dos pequenos investimentos e empreendimentos.

Ora, nas CIM e nas pequenas vilas e cidades do interior são os pequenos empreendimentos e os seus efeitos capilares e reticulares que predominam.

Há duas áreas onde essa urgência salta à vista, uma vez que são duas potenciais vítimas da virtualização da sociedade: em primeiro lugar, o modo como reocupamos um território cada vez mais “desertificado” de serviços públicos e, em segundo lugar, o modo como promovemos e reorganizamos um mercado de trabalho cada vez mais rarefeito.

Se a revolução tecnológica e digital abre um campo imenso de possibilidades e oportunidades é prudente e sensato que as CIM promovam três “pequenas revoluções”: em primeiro lugar, democratizar o acesso ao seu sistema produtivo local ou intermunicipal (procura interna), de acordo com a lógica dos recursos endógenos, em segundo lugar, promover as cadeias de valor locais e regionais no exterior da comunidade intermunicipal (procura externa), de acordo com uma lógica mais aberta e plural do universo laboral onde o fracionamento do mercado de trabalho, a pluriatividade e o plurirrendimento passem a ser uma norma social plenamente reconhecida.

Há muito trabalho a fazer nestas duas áreas, em especial, o que diz respeito às plataformas e metodologias do trabalho colaborativo e a smartificação do território. Um terceira pequena revolução passará pela criação de um “quarto setor”, justo, eficaz e eficiente.

 

A CIM, o ator-rede do “quarto setor”

O interesse coletivo (a proteção civil), os bens públicos, os serviços comuns, a solidariedade social, formam uma rede de cuidados integrados que eu aqui designo de “quarto setor”, uma área onde os municípios já exercem uma boa parte das suas atribuições e competências, mas que irá acentuar-se com o envelhecimento da população e a desertificação dos concelhos.

Desta vez, a “pequena revolução” que se pede às comunidades intermunicipais tem a ver com os impactos das grandes transições sobre os mercados laborais e as novas profissões que reclamam uma nova geração de investimentos em bens e serviços comuns nas áreas do conhecimento, tecnologias, artes e cultura.

Para o efeito, o território-rede das CIM deve ser o ponto de aplicação de um triângulo virtuoso formado pelas IES (as instituições de ensino superior), as AP (administrações públicas) e as AEP (associações empresariais e socioprofissionais).

Nos últimos anos foram criadas em várias regiões do país, com o apoio de fundos europeus e nacionais, muitas comunidades inteligentes: parques de ciência e tecnologia, centros de investigação e desenvolvimento, polos tecnológicos, centros de negócios, ninhos de empresas, incubadoras e aceleradoras de startup, espaços de coworking, smart cities, living labs, associações de desenvolvimento local, sociedades de capital venture, a Startup Portugal, uma associação de business angels, hubs tecnológicos e criativos, para além de muitas associações empresariais e socioprofissionais.

Estas comunidades inteligentes precisam de ser geridas com eficácia e eficiência, elas são a passagem quase obrigatória de muitos jovens saídos das IES, razão pela qual as CIM, porque estão no terreno, “são obrigadas” a funcionar como uma curadoria territorial de acolhimento que cuide de saber e praticar que o todo é maior do que a soma das suas parcelas, pois não há coesão territorial e social das CIM que resista aos efeitos difusos e dispersivos de todas estas comunidades ditas inteligentes.

 

Notas Finais

Em matéria de coesão territorial, sem uma conexão inteligente protagonizada por um agente principal, o ator-rede, e sem uma estrutura de missão ou curadoria territorial, que cuide dos bens e serviços comuns da CIM, não teremos resultados nem redução da vulnerabilidade territorial.

Para reforçar esta asserção e a necessidade de uma curadoria territorial para as CIM, lembro, mais uma vez, os impactos das grandes transições já antes referidas.

Doravante, as tecnologias digitais serão um poderoso instrumento de governação territorial, mas elas terão de fazer prova de vida in situ e não apenas ex situ sob pena de a tão propalada coesão territorial ser pouco mais do que um logro.

E, a terminar, uma sugestão que fiz em outra ocasião (Sul Informação, 28.05.2020). Por que não, em cada CIM, uma “escola de artes e tecnologias” em íntima articulação com as comunidades inteligentes antes referenciadas, à semelhança das antigas escolas industriais e comerciais do século XX?

E por que não aproveitar o especial networking das instituições de ensino superior que estão particularmente vocacionadas para poderem funcionar como instituições-plataforma, pois podem funcionar em canal aberto com a multidão, como uma placa giratória de problemas, projetos e colaboradores, em múltiplos formatos de crowd sourcing, crowd learning e crowd funding, e em regime inovador de “univercidade e pluriversidade”?

Ficam as sugestões.

 

 

 

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