O feminino: coordenada cultural contemporânea?

As agendas das políticas de igualdade visam equilibrar uma situação de subalternização secular, repondo justiça de oportunidades e seu efetivo desempenho

No que respeita a homens e mulheres, insiste-se, no mundo Ocidental, no qual as conquistas pelas últimas têm sido notórias, em políticas de igualdade: são estas que marcam as agendas europeias, nas quais inevitavelmente Portugal se inscreve.

Todavia, os números que nos devolvem a violência exercida sobre as mulheres continuam a ser preocupantes e culminam demasiadas vezes no homicídio, além de poderem ser detetados outros índices, estes relacionados com um mal-estar civilizacional evidente.

Não é de refletir, por exemplo, que as mulheres cheguem aos escaparates das livrarias com a sua produção literária num momento em que a linguagem se degrada, em que as palavras parecem ter perdido ressonância, em que a instrumentalidade assombra o coração do pensamento?

Não é de refletir que as universidades tenham observado um acesso em massa de população estudantil feminina num momento em que o conhecimento decai como mediação, em que se observa uma preguiça associada à complexidade de visões, em que se desconfia de pessoas bem-falantes?

Não é de refletir, por último, que as mulheres tenham conquistado o direito ao trabalho fora das suas casas, onde nestas continuam a arcar com o peso das tarefas diárias, num momento de degradação óbvia dos direitos associados ao trabalho, em que ganham por regra menos do que os homens, pese embora possam até assumir as mesmas funções, e em que são certamente as mais vulneráveis à flexibilização?

Claro que as agendas das políticas de igualdade visam equilibrar uma situação de subalternização secular, repondo justiça de oportunidades e seu efetivo desempenho.

Todavia, a situação é passível de ganhar uma diferente dimensão se lhe acoplarmos outra variável, ou seja, aquela em que se detecta um devir-feminino da cultura exactamente consentâneo com a Modernidade, esta a grande época-projeto em que nos inscrevemos e que, com honestidade, a pandemia covid-19 me parece ter definitivamente concluído para abrir a uma incógnita, ainda.

Assim, a igualdade é aferida pelo grau de cidadania que a abertura da Época Contemporânea nos devolveu: não esquecer os valores da Revolução Francesa, portanto, Liberdade, Igualdade, Fraternidade. O grau de cidadania vem pela progressiva inclusão, já que o cidadão talhado em termos históricos prescindiu das mulheres, como repudiou os pobres, como afastou aqueles que não correspondessem às exigências de uma identidade masculina e proprietária, logo, a sua forma primordial é tendencialmente abstrata para os dias atuais, se na génese foi a resposta directa e bem palpável de reconhecimento de uma parte privilegiada da sociedade.

Quanto ao devir-feminino da cultura, ele deteta-se pelo questionamento de uma razão iluminista soberana, aquela, nem mais nem menos, que se responsabilizou também por talhar o cidadão moderno e encarnada pelos homens que, como se disse, nem estão todos incluídos: daí falarmos hoje nos direitos das minorias.

Acontece que, face à identidade masculina e proprietária que equivale à razão iluminista soberana da Modernidade, as mulheres nunca foram, são, serão, ou seriam, uma minoria, simplesmente porque são quem engendra comunalmente com os homens, primeiro, depois, porque é no feminino e no masculino, na diferença, na dimensão sexual e erótica, que começa o social, mormente, pelo pensamento, e sentimento, gerador.

Por aqui se percebe a existência de dois planos: o da igualdade e o da diferença, que equivalem também ao da cidadania e ao do corpo. Os dois planos deverão ser considerados, tanto existencialmente, como discursivamente.

Claro que o caminho que o Ocidente tem feito no sentido de alastrar direitos a pessoas que não estavam incluídas no protótipo de cidadão talhado na abertura da Época Contemporânea, esta subsumida, portanto, no projeto da Modernidade, é essencial e dele não devemos desistir.

Mas não será passível de reflexão séria que, detetando-se um devir-feminino da cultura, se observe, ao mesmo tempo, o início das grandes lutas históricas feministas? E isto porquê? Porque aquele caminho assenta na igualdade e porque aquele devir defende a diferença: as mulheres, através das clamações do feminismo, desejam ser reconhecidas como cidadãs, e arrebatar direitos negados secularmente, e que a contemporaneidade voltou a negar congenitamente; alguns homens, através da crítica do projeto maior da Modernidade assente numa razão iluminista soberana e avassaladora, diversamente, aproximam-se do feminino como alternativa a uma cultura imemorial de prevalência do masculino, em que se vêem queimadas muitas, quase todas, as possibilidades de diferença.

Por aqui se percebe a incomodidade, quase generalizada, de parte do feminismo atual perante um conceito de diferença que bastas vezes afirmam fazer cair num essencialismo fantasmático, por um lado, e, por outro, a apropriação de valores femininos pelos homens que pretendem uma nova racionalidade crítica, que integre o inconsciente, e a própria diferença.

Temos, então, que as mulheres, genericamente, dirigem o seu olhar para os homens que não lhes reconheceram os privilégios que mereciam por direito, e reclamam-nos; já os homens, uma parte significativa daqueles que pretendem reinventar-se, dirigem o seu olhar para as mulheres, e buscam num outro modo de ser as vias para pensar, e agir, escrever, imaginar, uma sociedade diferente.

Todavia, e em face do fantasma do essencialismo, pois se existe um argumento feminino sonoro é o de que foram os homens que nomearam as mulheres, foram os homens que construíram o mundo, foram os homens que caucionaram a secundarização das mulheres, para as mulheres, genericamente, resulta bastante desconfortável esse foco na sua diferença, o mesmo que entusiasma tanto os homens, quando o que pretendem passa, sobretudo, pela igualdade: social, jurídica e económica. Julgo, por tal, que se exige uma perspetivação destas duas realidades, sem assombrações, com paciência e resistência.

 

Autora: Cláudia Ferreira
Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva
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Cláudia Ferreira é natural de Coimbra. Licenciada em História/var. História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo frequentado Estética e Filosofia da Arte na FLUCL, em Lisboa, sendo nessa mesma cidade que viria a concluir o mestrado em Estudos sobre a Mulher – As Mulheres na Sociedade e na Cultura, concretamente, na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, para, em 2019, obter o doutoramento em Estudos Contemporâneos na Universidade de Coimbra com a tese intitulada O Rosto das Horas: do feminino e do masculino, com a arte.
É investigadora do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX – CEIS20 e desempenha as funções de Técnica Superior na Câmara Municipal de Condeixa.

 

 


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