Faro 2030, uma década excecional

Os processos de patrimonialização e turistificação não podem abdicar da sua responsabilidade social, ambiental e cultural

Cidade de Faro – Foto: Flávio Costa | Sul Informação

A década que se avizinha é única e excecional. Por isso, não é demais repetir as tendências pesadas onde hoje se movem todas as nossas atividades: o inverno demográfico e o envelhecimento, as alterações climáticas e os grandes riscos (a covid-19), a volatilidade dos investimentos e dos mercados (a crise do turismo), a intensificação das vagas migratórias (os fluxos de refugiados), a transformação digital e a automatização do progresso tecnológico (o desemprego), a desvalorização estrutural da força de trabalho e a sua precarização (o empobrecimento), as crises agudas recorrentes do sistema capitalista (o emagrecimento das classes médias), a aceleração disruptiva das dinâmicas territoriais e os choques assimétricos sobre pequenas economias abertas como a nossa.

Por todas estas razões, a década que se avizinha faz, por um lado, apelo a um grande sentido de urgência devido a uma grave crise de saúde pública associada a uma profunda depressão socioeconómica e, por outro, a um grande sentido de exigência, se quisermos, a um sentido muito forte de destino comum que se inscreve no horizonte 2030 e que visa aproveitar, ao máximo, as oportunidades de recuperação e desenvolvimento oferecidas pelos programas Portugal 2020, Portugal 2030 e programa de resiliência e recuperação (PRR).

Neste contexto excecional, e numa visão, digamos, pragmática, parece-me fundamental procurar o compromisso adequado entre a linha de abordagem que decorre diretamente do pacote de medidas constantes dos três programas referidos, por um lado, e a linha de abordagem que decorre da proposta de “Faro, Capital Europeia da Cultura”, de tal modo que esta proposta surja como uma candidatura nuclear e prioritária do próximo quadro plurianual 2020-2030.

Quer dizer, temos pela frente uma oportunidade única de estruturar o próximo “programa operacional regional” como um compromisso entre grandes transições – a transição ecológica (a valorização do património natural), a transição energética (a descarbonização), a transição demográfica (o rejuvenescimento da população), a transição digital (a digitalização das atividades) – e durante a década realizar a transformação do modelo socio-produtivo e sociocultural da região através de um compromisso inovador entre a natureza e a cultura.

 

Faro 2030, 10 objetivos/programas para uma década

O compromisso entre a natureza e a cultura para a década será realizado através de dez objetivos e programas, a saber:

1. A Cidade Verde e Circular
A transição ecológica será realizada através da elaboração do plano verde da cidade e do concelho.

2. A Cidade da Transição Energética
A transição energética (descarbonização) será realizada através da elaboração do programa de mobilidade suave e eficiência energética.

3. A Cidade da Dieta Mediterrânica
A transição agroecológica será realizada através do sistema agroalimentar local, por via do parque agroecológico municipal e a rede dos mercados locais.

4. A Cidade do Envelhecimento Ativo
A transição justa entre gerações será realizada através do programa de envelhecimento ativo, cuidados ambulatórios e serviços de proximidade.

5. A Cidade Inteligente
A transição tecnológica será realizada através do programa de infraestruturas tecnológicas, plataformas digitais colaborativas e espaços de coworking.

6. A Cidade da Inovação Jovem
A transição justa do rejuvenescimento será realizada, também, pelo programa de literacia digital, requalificação profissional e a formação de jovens empresários.

7. A Cidade da Inovação PME
A transição empresarial será realizada através do programa de incentivos à transferência de tecnologia e criação de start up.

8. A Cidade Criativa
A transição criativa e sociocultural será realizada através do programa de apoio ao cluster das empresas criativas e culturais e ao projeto de “Faro, capital europeia da cultura”.

9. A Cidade Azul
A transição climática e ecológica será realizada através do programa de apoio à formação de um cluster da economia do mar.

10. A Cidade da Ria Formosa
A transição climática e ecológica será realizada, de forma muito especial, através do programa para a proteção e valorização do património natural da ria formosa.

 

Faro 2030, o compromisso entre a cultura da natureza e a natureza da cultura

De um ponto de vista programático, estes dez objetivos e o compromisso entre a natureza e a cultura assentam em cinco linhas estratégicas fundamentais que importará acompanhar de perto por intermédio de um ator-rede ou curador urbano que eu aqui designo de Gabinete da Cidade. Eis essas cinco linhas estratégicas:

1) Linha 1, transição socio-ecológica: o plano verde e a cidade orgânica, as infraestruturas ecológicas e a rede de corredores verdes, a reabilitação dos ecossistemas e serviços de ecossistema, a arquitetura biofísica e as artes da paisagem, elementos da memória do território e do seu património natural e cultural;

2) Linha 2, transição sociocultural: a articulação estreita entre o património natural e cultural e a transformação profunda do espaço público, mais plataformas materiais e virtuais de atividades culturais e criativas como elementos de uma economia e sociedade mais colaborativas, uma escola empresarial de artes e tecnologias e uma rede de apoio de residências científicas, culturais e artísticas;

3) Linha 3, transição sociodemográfica: programa de inovação social para a sociedade sénior (envelhecimento ativo e clubes colaborativos) e de integração socio-laboral para os mais jovens; em especial, as infraestruturas e os equipamentos da sociedade digital que promovem o trabalho colaborativo, a incubação empresarial e a mobilidade dos nómadas digitais, mas, também, os neorurais da chamada 2ª ruralidade;

4) Linha 4, transição socioeconómica: o lançamento de um sistema agroalimentar de proximidade sob a forma de “parque agroecológico municipal ou intermunicipal” e a economia da dieta mediterrânica como exemplos de compromisso entre o património natural e a economia regional; em seguida, o exemplo do cluster da economia do mar, depois a silvicultura preventiva e a economia florestal no interior algarvio, mas, ainda, as empresas do cluster criativo e cultural e, em todos os casos, o respeito pelas exigências da economia circular,

5) Linha 5, transição socio-digital: trata-se de apoiar todas as propostas de formação de comunidades inteligentes e respetivas plataformas, por exemplo: as comunidades locais de coprodução de energia renovável, as várias plataformas de teleservicos e serviços à distância, a mobilidade partilhada e a micromobilidade, os serviços partilhados de proximidade, a rede de cuidadores formais e informais, a comunidade dos agricultores urbanos, o banco de alojamento local, a comunidade dos serviços de voluntariado, etc.

Em resumo, e cumprindo as orientações do pacto ecológico europeu, a ecologia urbana da cidade e do concelho, as infraestruturas ecológicas, os corredores verdes e os serviços de ecossistema terão um lugar proeminente no planeamento, na prevenção e na terapêutica urbanas.

Estas infraestruturas ecológicas, em sentido lato, que nós designamos aqui como os “operadores biofísicos da cidade em rede” serão essenciais na projeção territorial da cidade, pois elas poderão funcionar como as placas giratórias dos corredores verdes e como novos lugares centrais da cidade em rede.

A conexão entre o património natural e o património cultural, assim como o respeito da economia regional por esta conexão fundamental, determinarão os limites para o modelo produtivo da próxima década, em particular, as cargas de visitação da economia do turismo.

 

O Gabinete da Cidade e os projetos mais emblemáticos

Faro 2030, a elevada complexidade desta realização, merece um ator-rede, um curador territorial, que esteja à altura de tão elevado propósito. Dada a latitude dos desafios e do horizonte temporal creio ser imprescindível uma parceria e estrutura de missão e essa é a razão de ser da minha proposta de um Gabinete da Cidade.

Em primeira aproximação, numa abordagem, digamos, conservadora e tendo sempre em conta as elegibilidades possíveis e o pacote de candidatura aos fundos europeus, os projetos mais relevantes ou mais emblemáticos a tomar em consideração pelo Gabinete da Cidade seriam os seguintes:

1. Faro, Saúde Pública: o reforço dos serviços hospitalares e cuidados de saúde,

2. Faro, Plano Verde: a cidade orgânica e circular (os recursos hídricos),

3. Faro, Smart City: cobertura e infraestruturas digitais fundamentais,

4. Faro, Capital Europeia da Cultura: os sinais distintivos patrimoniais,

5. Faro Intergeracional: o envelhecimento ativo e o rejuvenescimento,

6. Faro, Ciência e Tecnologia: o reforço das áreas das artes e tecnologias,

7. Faro, Starting Up: o parque tecnológico e a criação de novas empresas,

8. Faro, Mar: as atividades, cadeias de valor e os produtos do cluster do mar,

9. Faro, Reabilitação: recuperação do casario da baixa e do centro histórico,

10. Faro, Frente Ribeirinha: ria formosa, artes da paisagem e novo espaço público.

Quando refiro estes projetos emblemáticos estou a pensar, também, nos efeitos rede e aglomeração que eles nos proporcionam, razão pela qual o Gabinete da Cidade deve cuidar desses benefícios de contexto e encaminhá-los na direção certa.

Estou a pensar na melhor ecologia urbana para a cidade, na reabilitação do casario do centro histórico e na relação entre a sociedade sénior e um novo urbanismo.

Estou a pensar no programa de apoio à arte urbana e património, ao artesanato e pequenos espaços/mercados de proximidade e na melhor abordagem para a promoção das empresas criativas e culturais da cidade.

Estou a pensar, ainda, nos terceiro-lugares (tiers-lieux) da cidade para atrair trabalhadores independentes, trabalhadores em teletrabalho, a sede de start up, residências artística/científica, estudantes de mestrado/doutoramento, investigadores, trabalhadores intermitentes (artes do espetáculo), ou seja, uma política de captação de talentos para o ecossistema urbano e tecnológico da cidade de Faro.

 

Notas Finais

É sabido que a ecologia e a economia, a arte e a cultura, abrem a porta a inúmeros fatores imateriais e intangíveis que contribuem fortemente para recriar as cadeias de valor hoje existentes.

É sabido, também, que a cooperação entre vilas e cidades é um recurso perfeitamente acessível e um instrumento valioso para introduzir uma nova arquitetura de relações a pensar na visitação, o turismo em espaço rural e as vias de acesso privilegiadas para a sociedade sénior.

É sabido, igualmente, que a tecnologia, em especial as artes digitais, recoloca a relação entre património e cultura num patamar mais elevado e abre a porta a uma nova sociabilidade. É sabido, ainda, que as lógicas de industrialização do património ou patrimonialização abusiva podem causar danos irreversíveis sobre os recursos patrimoniais.

Por isso, incumbe ao Gabinete da Cidade uma tarefa fundamental, qual seja, a de acautelar que os excessos aconteçam no espaço público da cidade, seja a gentrificação dos centros históricos, a patrimonialização abusiva, a turistificação excessiva, a ludificação ou gamificação dos tempos livres, a uberização dos trabalhadores ou a digitalização abusiva da vigilância dos cidadãos.

As cidades do futuro serão cidades em rede feitas de uma sábia mistura de natureza e cultura, sobretudo porque não é indiferente a forma como uma cidade se torna inteligente e criativa.

No mesmo sentido, os processos de patrimonialização e turistificação não podem abdicar da sua responsabilidade social, ambiental e cultural, pois este é um campo (social, ambiental e cultural) onde a comunidade inteligente pode ser extraordinariamente inovadora, em particular, na recriação dos seus “signos distintivos territoriais” e de uma iconografia apropriada à sua nova imagem e condição.

Cuidado, portanto, com os excessos de patrimonialização, natural e cultural, pois nem “tudo está obrigado a render” no mais curto espaço de tempo, o tempo curto do turismo.

A economia local e regional não pode ser reduzida a uma sucessão de eventos, feiras e festivais, numa vertigem consumista que impede a integração destas celebrações em “atos orgânicos” de estruturação sustentável da economia local e regional.

Só uma ética do cuidado e uma adequada curadoria territorial estarão à altura deste grande desafio intergeracional.

 

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

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