Pessoas, somente pessoas!

Nós, cristãos, temos um papel fundamental para que a paz social aconteça nas nossas sociedades e, para isso, temos de ajudar a distinguir a saudável brincadeira da verdadeira agressão

Era eu bem pequeno e já era vítima de bullying (o uso de força física, ameaça ou coerção para abusar, intimidar ou dominar agressivamente outras pessoas de forma frequente e habitual) e de body shaming (uma expressão que, traduzida para português, poderia ser definida como “vergonha do nosso corpo”, mas que consiste na conduta de criticar os defeitos físicos das pessoas, com comentários que podem ferir quem os recebe).

Nasci um bebé rechonchudo e coradinho e fui crescendo assim: grande, gordo e vermelho (condição que, aliás, resulta de um distúrbio de pele, chamado rosácea e que não é muito agradável de ter, pois, para além da pigmentação da pele, traz outras complicações, que agora não vale a pena adiantar).

Esta conjugação de fatores levou a que, desde cedo, me “alcunhassem” com as mais diversas expressões: “bochechas”, “gordo”, “caixa de óculos”, “tomate”, “vermelho”, entre outros menos agressivos e até engraçados, mas raramente na minha infância, adolescência e juventude fui conhecido e chamado pelo meu nome. Até aos 16 anos, só a minha família me tratava por Miguel. Confesso que muitas vezes até me soava estranho.

O facto de ter mais aptidão para a intelectualidade, do que para a força física, também fez com que eu fosse brindado com gestos de violência física por parte de algumas pessoas, colegas sobretudo, alguns dos quais acabam por, ainda hoje, serem meus amigos.

Esse aspeto persiste em atormentar-me: volta e meia, alguém se lembra de que uma foto de um sujeito grande, gordo e vermelho, a beber cerveja na praia, posso ser eu e diverte-se praticando aquilo que se chama cyberbullying (corresponde às práticas de agressão moral organizadas por grupos, contra uma determinada pessoa, e alimentadas via internet). E, claro está, como agora já sou adulto, a vermelhidão da minha rosácea só pode ser confundida com consumo excessivo de álcool.

Sei que este tipo de situação não aconteceu só comigo e que há, infelizmente, quem tenha sofrido e ainda sofra muito mais com este tipo de ataque pessoal.

Fui ultrapassando tudo isto e, como disse, acabei por me tornar amigo de alguns daqueles que exerciam violência sobre mim. Até porque, ao invés do que possam pensar, fui-me colocando na sua pele, tentando entender os processos pelos quais passavam, o que me fortaleceu e me deu uma compreensão muito melhor de como são e o que sentem.

Descobri, ao longo do tempo, que grande parte deste tipo de atitudes vindas dos outros nos torna mais fortes e duros para a vida. Comprovei que os que nos atacam gostariam de ser como nós e exercem poder e força sobre o único aspeto em que, geralmente, têm mais capacidades: seja sobrepondo a força física à capacidade intelectual; seja suportando-se no autoritarismo em relação ao poder argumentativo; seja tentando suprimir o nível baixo de inteligência emocional e capacidade de relacionamento, face à competência social e criação de empatia com e do outro.

Tudo isto está presente naqueles que são sujeitos a qualquer espécie de bullying e, vice-versa, nos bully.

Quando alguém se acha superior ao outro só porque este tem uma pele negra, faz parte de um grupo nómada (como os ciganos), ou é oriundo de um país do leste europeu, é porque é muito incapaz e inferior e não tem mais nada que o valorize a não ser a cor de pele, o sítio onde nasceu, ou a família de onde veio. E isso é mesmo muito pouco. E não deixa de ser uma forma de bullying.

E, tristemente, também acontece o oposto, ou seja, não há civilizações melhores ou piores, mais avançadas ou menos. Cada qual é como é e assim deve ser merecedor de respeito. No entanto, quando se quer legitimamente autonomia e independência, depois não se pode vir solicitar ajuda sempre que não se consegue orientar a própria vida. O Filho Pródigo (Lucas 15:11-32), quando regressou, não regressou para pedir mais dinheiro ao pai, mas para aceitar viver com e como o pai.

É necessária paz social e a paz social engloba todos estes aspetos. Nós, cristãos, temos um papel fundamental para que isso aconteça nas nossas sociedades e, para isso, temos de ajudar a distinguir a saudável brincadeira da verdadeira agressão. Não podemos colocar tudo no mesmo patamar.

E temos, igualmente, de ajudar a perceber que, por muitos problemas sociais que alguns grupos étnicos e raciais tenham, eles não são responsáveis pela queda do BES ou pela Operação Marquês, como diz um conhecido humorista português. E não são, certamente, responsáveis por todos os males do mundo.

Nesta altura do ano, gostaria de recordar que os primeiros a quem Deus se manifestou foram, segundo a tradição cristã, representantes da Ásia, África e Leste Europeu – os famosos Reis Magos – regiões de onde são provenientes precisamente aqueles que, hoje, olhamos de lado.

E que os outros, eram pastores humildes, gordos e magros, com caras mais gordas e vermelhas ou menos. E que Deus não os excluiu daquele momento que é, quer se queira, quer não, determinante para a História da Humanidade.

Não sejamos nós a excluir. Mas tratemos todos como pessoas, somente pessoas. Pessoas más, se tiverem comportamentos maus pelos quais devem ser condenados, ou pessoas boas, porque têm comportamentos bons e devem viver e inserir-se em sociedade, com normalidade e respeito.

 

Autor: o Padre Miguel Neto é diretor do Gabinete de Informação e da Pastoral do Turismo da Diocese do Algarve, bem como pároco de Tavira

 

 

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