A mercearia orçamental para 2021

Não tenho dúvidas de que a intergovernamentalização do projeto europeu será a derradeira linha vermelha, a última fronteira política do continente europeu

A mercearia orçamental para 2021 é simplesmente deliciosa. Na passada quinta-feira, em véspera de Black Friday, a Assembleia da República aprovou o orçamento de Estado para 2021. Foi um dia memorável, ao todo chegaram ao Parlamento cerca de 1500 propostas de alteração à proposta inicial de orçamento. A esmagadora maioria ficou pelo caminho, outras foram aprovadas no âmbito de processos de negociação. As áreas fiscal, segurança social e saúde foram as que mais se destacaram na versão final do orçamento.

O que mais me surpreende, neste contexto, não é o funcionamento intrínseco da nossa Assembleia parlamentar, que deu provas de uma grande vitalidade democrática com coligações partidárias para todas os gostos, positivas e negativas, em mais de mil alterações na especialidade.

Os deputados são os representantes do povo, a grelha de representação política é cada vez mais alargada, o governo é minoritário, logo, essa diversidade fica espelhada na variedade das propostas de alteração.

O que é surpreendente é que, no momento mais crítico da nossa vida coletiva, em todos os planos, não tivesse sido possível criar um espaço de resguardo e responsabilidade política para debater o essencial para lá da mercearia de ocasião.

Ora, o ano de 2021, pode ser o ano da tempestade perfeita, se houver uma “coligação negativa de acontecimentos”, por exemplo: outras vagas de covid 19 associadas a falhas graves do sistema de vacinação, a radicalização social e política da sociedade portuguesa para ir à boleia e tirar partido de duas eleições (presidenciais e municipais) em 2021, o atraso na aplicação dos programas de fundos europeus e a insolvência de muitas PME, um crescimento económico monótono e anémico em 2021 abaixo de 3% com impacto negativo no défice, na dívida pública e no rating da república, enfim, um défice de investimento público por virtude das cativações desse investimento e com impacto direto nas taxas de recuperação da economia.

Mas este é o pior cenário se prevalecer a navegação à vista e a incompetência política. Um cenário mais positivo pode, igualmente, acontecer. A presidência alemã fecha ainda este ano os programas europeus de financiamento.

A presidência portuguesa no primeiro semestre de 2021 acelera os regulamentos de aplicação desses programas e as primeiras transferências financeiras têm lugar no 2º semestre do ano. Os programas de vacinação contra a covid 19 decorrem normalmente durante o 1º semestre de 2021 e a economia recupera bem já no 2º e 3º trimestres do ano, com um especial destaque para o turismo.

Os programas de apoio empresarial começam a surtir efeito e as taxas de desemprego não são tão altas como se temia. O programa de investimentos públicos avança a bom ritmo no 2º semestre do ano e isto apesar de alguma controvérsia acerca da política de cativações.

Dito isto, o mais provável é que haja um terceiro cenário intermédio com muita incerteza associada e com alguns eventos que hoje não somos capazes de antecipar. E muito em especial, não gostaria em 2021 de assistir, uma década depois, à repetição da dramaturgia política do ano de 2011 que acabou com a demissão do primeiro-ministro e depois, como sabemos, com a presença da Troika em Portugal.

Por todas estas razões, a mercearia orçamental agora aprovada não teria tanta importância, até pela sua reduzida expressão financeira, se, ao mesmo tempo, tivessem sido formadas coligações positivas maioritárias e tomadas decisões orçamentais firmes, para estabilizar e recuperar a economia portuguesa. E que decisões seriam essas?

Em primeiro lugar, é imperioso concretizar, na atual legislatura, um vasto programa de investimentos públicos para alavancar o investimento privado e conseguir uma correlação positiva entre taxa de crescimento do PIB e taxa de execução do programa nacional de reformas (PNR), de modo a diminuir o peso e a restrição da dívida pública no produto e, assim, deixar margem de manobra orçamental para os anos seguintes.

Em segundo lugar, temos de impedir, a todo o custo, uma “recuperação assimétrica” do país e uma divergência ainda maior entre Estados membros, pelo menos até 2023, ano em que termina a convergência entre o atual Portugal 2020 (regra de n+3), o Portugal 2030 e os três primeiros anos do Programa de Recuperação 2030; ou seja, é urgente uma “visão para o país” que seja, desde logo, posta em prática nos primeiros três anos da próxima década pelo que devemos evitar que a gestão da mercearia prejudique a efetividade da política orçamental até 2023. Se assim for, depois de 2023 o país poderá entrar em velocidade de cruzeiro.

Em terceiro lugar, para executar bem o investimento público constante dos programas nacionais de reforma estrutural (PNR), a condicionalidade macroeconómica europeia deverá continuar suspensa no que diz respeito ao pacto de estabilidade e às disposições do tratado orçamental, designadamente o procedimento por défice excessivo e as regras sobre dívida pública. E nesta matéria, a nossa posição política na União só sairá reforçada se a nossa reputação financeira não sair beliscada no plano doméstico.

Quer dizer, por todas as razões, os próximos três anos serão cruciais para estabilizar e recuperar o país e, dessa forma, iniciar um crescimento virtuoso e não apenas um crescimento monótono. É, justamente aqui, que a mercearia orçamental e as dificuldades de gestão política de um governo minoritário revelam todas as suas fragilidades, pois retiram foco, concentração e critério à política orçamental de médio prazo.

O mais provável é que o ministro das Finanças volte à política de cativações para impedir deslizes maiores na gestão das finanças públicas, tanto mais quanto, é bom lembrar, as linhas de crédito com garantia pública e o incumprimento das moratórias concedidas podem fazer disparar o défice público.

Notas Finais

Na melhor das hipóteses, os programas europeus de financiamento serão aprovados durante a presidência alemã e, se assim for, Portugal terá uma presidência semestral de continuidade para preparar os regulamentos de aplicação.

Na pior das hipóteses, todos os problemas relativos aos fundos europeus e respetiva regulamentação transitarão para a presidência portuguesa que, assim, se encontrará muito sobrecarregada e, provavelmente, incapaz de levar a bom porto uma tarefa tão exigente em apenas seis meses.

Porém, seja qual for a situação no dia 1 de janeiro de 2021, a participação no trio das presidências permitirá avaliar, antecipar e programar com tempo as tarefas a realizar durante todo o ano de 2021.

Uma associação que se pode revelar perigosa diz respeito, por um lado, ao eventual fracasso das negociações do Brexit e, por outro, ao precedente que esse facto representa para alguns “países relutantes” do leste europeu que, através do veto aos fundos europeus, podem pretender, de algum modo, balcanizar a política europeia. Neste contexto, o receio de o Brexit vir a constituir uma teoria do precedente é bem real.

A última nota diz respeito à natureza e alcance da chamada política de condicionalidade europeia, aquela que se relaciona com a próxima revisão das normas e regras relativas ao pacto de estabilidade, ao tratado orçamental e o semestre europeu. É, digamos, em termos orçamentais e financeiros, o elefante dentro da sala de porcelana.

Queremos, doravante, uma União Europeia de valores e princípios e respeito pelo Estado de direito democrático como “condição incondicional”, onde se conta o respeito pelo artigo 7º dos tratados europeus, ou uma União Europeia meramente instrumental, um simples mercado único para gerar valor económico para cada Estado membro?

Estão os europeus disponíveis, numa próxima revisão dos tratados, para uma União de geometria variável com uma condicionalidade para cada nível de adesão, materializada, por exemplo, em cooperações estruturadas reforçadas, já previstas, de resto, nos tratados ou vamos abrir a porta a mais saídas da União dando sequência ao precedente britânico?

Por último, e por todas as razões apontadas, não tenho dúvidas de que a intergovernamentalização do projeto europeu será a derradeira linha vermelha, a última fronteira política do continente europeu. Se assim for, estaremos, de novo, mergulhados na escuridão sombria de um neomedievalismo político e à beira de perdermos as democracias para as ditaduras dos homens providenciais, mesmo que eufemisticamente apelidadas de democracias iliberais.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

Ajude-nos a fazer o Sul Informação!
Contribua com o seu donativo, para que possamos continuar a fazer o seu jornal!

Clique aqui para apoiar-nos (Paypal)
Ou use o nosso IBAN PT50 0018 0003 38929600020 44

 

 



Comentários

pub