O programa regional e o sistema operativo da região NUTS II

Mais uma reflexão do professor António Covas

Um dos problemas de realização mais complexa para a próxima década é a preparação do sistema operativo, político e técnico-administrativo, de programação, planeamento, execução e controlo, dos inúmeros compromissos de investimento contidos no programa de recuperação e resiliência (PRR), no quadro financeiro plurianual (QFP), nos vários programas de iniciativa europeia, no quadro dos empréstimos do banco europeu de investimentos (BEI), no âmbito dos nossos orçamentos anuais, para lá, evidentemente, dos créditos concedidos pela banca e dos capitais próprios dos proponentes beneficiários de todos esses fundos.

Neste universo, os regulamentos e o labirinto dos procedimentos, as derrapagens e as ineficiências, as arritmias de execução, a condicionalidade europeia, as restrições orçamentais e as cativações, as pesadas sequelas da Covid-19, o crédito malparado e a falta de capitais próprios dos nossos investidores, serão alguns dos episódios mais frequentes neste contexto. É um bom pretexto para uma breve reflexão sobre o assunto. Vejamos algumas abordagens possíveis e prováveis.

1. Uma abordagem burocrático-administrativo na ótica do utilizador

Nesta primeira abordagem somos simples utilizadores e utentes, o sistema operativo é feito, essencialmente, de protocolos, processos e procedimentos (PPP) numa plataforma digital de concursos e candidaturas onde reina o mestre-algoritmo europeu e nacional. No final, tudo se resume a taxas gerais e globais de compromisso, de contratualização, de realização e de pagamento.

2. Uma abordagem articulada multiníveis dos programas de investimento

Nesta segunda abordagem, as agendas de investimento local, regional e nacional são articuladas entre si no tempo e no espaço, para que todo este exercício não se transforme numa manta de retalhos de despesa pública e privada, sem qualquer coerência e consistência. Num horizonte de uma década parece inteligente e muito sensato conciliar os calendários de seis agendas de investimento: as infraestruturas digitais do território (1), o plano geral de literacia digital (2), a digitalização da administração pública (3), as cidades inteligentes e criativas (4) a digitalização do universo empresarial de PME (5), a digitalização da sociedade e da economia colaborativas (6). O programa operacional regional é o quadro apropriado para a regionalização e realização destes investimentos.

3. Uma abordagem articulada dos vários instrumentos financeiros

Nesta terceira abordagem, os programas europeus e nacionais de apoio abrem a porta a inúmeros instrumentos financeiros com vocações muitos diferenciadas e muitos investimentos procurarão uma comparticipação de acordo com a sua natureza e finalidade. Estou a falar de fundos europeus e nacionais (orçamentais), de sociedades de capital de risco, dos fundos de investimento, dos empréstimos do novo Banco de Fomento e do Banco Europeu de Investimentos, da banca de investimento, dos créditos da banca comercial, dos empréstimos garantidos pelo Estado, do financiamento participativo, entre os mais importantes. Julgo que seria avisado dispor de uma visão operacional articulada desta engenharia financeira e muito aconselhamento técnico a este propósito.

4. Uma abordagem “ecossistema digital de base regional”

A região NUTS II é um centro de racionalidade territorial privilegiado. Para lá dos investimentos transversais aplicados na região, o ecossistema digital de base regional seria composto pelos seguintes instrumentos:
– Um Polo de Inovação Regional que funcionará como data center, incubadora de start up e espaço de coworking,
– Um programa digital de lojas do cidadão nos municípios, mas, também, para introduzir os teleserviços, em várias áreas,
– Um programa regional para digitalizar a economia verde e a economia circular,
– Um programa regional de apoio às PME e start up das áreas da economia azul, da economia verde e economia circular e respetivas plataformas colaborativas.

Esta abordagem “ecossistema digital de base regional” terá o seu núcleo central na CCDR respetiva e reclamará uma nova arquitetura dos serviços regionais, em especial, a organização do back office front office de todos os serviços públicos regionais, onde se contará, também, um gabinete regional de aconselhamento digital e analítica urbana.

 

Notas Finais

Seria uma profunda deceção que um “combinado profuso, confuso e desordenado” destas quatro abordagens fosse, na prática, a opção privilegiada, por algum arranjo de conveniência. É certo, a próxima década será um período muito complexo onde se cruzam muitos fatores imponderáveis. Refiro-me a objetivos que, neste momento, não é possível sequenciar: a estabilização e a emergência, a mitigação e a recuperação, a modernização e a transformação da economia e da sociedade portuguesas. Porém, dada a grande incerteza deste período não é crível que o país não disponha de um guião e de um argumentário sólidos e consistentes em matéria de planeamento e realização de investimentos.

Em particular, não é crível que a abordagem prevalecente se converta num labirinto burocrático-administrativo: no plano micro, concursos muito variados que abrem e fecham descompassadamente de acordo com os procedimentos do algoritmo europeu e nacional, no plano macro, um plano nacional de investimentos que segue ao ritmo dos défices, da dívida e das cativações em razão da condicionalidade da política europeia, no plano meso-territorial, programas operacionais regionais sem autonomia suficiente para diferenciarem e consolidarem o seu programa de investimentos de desenvolvimento rural e regional.

No final, ninguém compreenderia que tantos investimentos públicos e privados servissem apenas para regressar à velha normalidade de mediania e monotonia em matéria de crescimento económico. Estamos no final de 2020. Depois das primeiras apresentações públicas não vejo, nos programas já anunciados, inovações político-administrativas e garantias suficientes no plano regional de que, o que aí vem, será muito diferente do que aquilo que já lá vai. Não basta a eleição indireta do presidente das CCDR, é fundamental uma nova arquitetura para os serviços regionais e uma forte regionalização do programa operacional e do correspondente plano de investimentos.

A terminar, deixo uma proposta de sistema operativo para a apreciação dos leitores, em particular, a pensar especificamente na abordagem do “ecossistema digital de base regional”:

– Criar o Ministério do Planeamento e Administração do Território, em substituição dos ministérios do planeamento e coesão, bem como, uma estrutura independente de acompanhamento e monitorização,

– Formar um Conselho Executivo Regional presidido pelo presidente da CCDR e materializar uma nova arquitetura dos serviços regionais com base numa “plataforma analítica territorial” de base digital sediada na CCDR,

– Com base nas orientações de política de ordenamento e planeamento e do Programa Operacional Regional, formalizar um “contrato de delegação de competências” da administração central e local para as capitais sub-regionais das CIM no âmbito da lei-quadro nº50/2018;

– Esta delegação de competências abre a porta a um Contrato de Desenvolvimento Territorial em cada CIM e a um “nível de subvenções CIM”, tendo em vista dar cumprimento à lei-quadro de transferência de competências e ao DL nº 102/2018 de 29 de novembro e nomeando, para o efeito, uma estrutura de missão ou administração dedicada em cada CIM;

– Criar em cada NUTS II uma “escola de artes e tecnologias” com a missão de apoiar a transformação digital da sociedade, promover a literacia digital dos cidadãos e formar uma geração de jovens empreendedores da era digital,

– No âmbito dos programas europeus, nacionais e regionais concretizar um programa ambicioso de cooperação transfronteiriça para as euro-regiões e euro-cidades da fachada ibérica.

Vamos, pois, aguardar pelos próximos capítulos.

 

Autor: António Covas é Professor Catedrático Aposentado da Universidade do Algarve

 

 

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